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No Brasil, o absurdo é sempre surpreendente. Vivemos dias em que a liberdade religiosa, outrora assegurada com firmeza, parece ter se tornado um direito apenas retórico – bonito no papel, mas constantemente ameaçado na prática.
A bola da vez é o Projeto de Lei 110/2021, de autoria do ex-deputado Alexandre Frota, que tramita na Câmara dos Deputados e recebeu parecer favorável da relatora, deputada e delegada Ione. A proposta obriga todos os estabelecimentos públicos e privados, incluindo igrejas e locais de culto, a fixarem cartazes com os números do Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher) e do Disque 100, sob pena de sanções administrativas e até de cassação do alvará de funcionamento. Vejam o texto do PL:
“§ 3.º A Administração Pública direta e indireta, bem como os estabelecimentos comerciais e congêneres, deverão promover, por meio de materiais informativos, a ampla divulgação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 e do Disque Direitos Humanos – 100, com o objetivo de promover a proteção das mulheres e facilitar o acesso aos canais de denúncia.
§4.° Sujeitam-se à divulgação de que trata o § 3.º deste artigo os estabelecimentos comerciais e congêneres que, em caráter permanente ou eventual, desenvolvam ao menos uma das atividades:
(...) VIII – locais de culto religioso;
(...) § 6.° Os materiais para a divulgação de que trata o § 3.° deste artigo deverão ser afixados em locais diversos dos estabelecimentos, preferencialmente nos sanitários femininos, em tamanhos e formatos de fácil visualização.
(...) § 8.° O descumprimento do disposto nesta Lei pelos estabelecimentos referidos no § 4.º deste artigo sujeitará os responsáveis às seguintes sanções, aplicadas cumulativamente conforme a reincidência:
(...) III – cassação do alvará de funcionamento, na hipótese de segunda reincidência, permanecendo a interdição até o efetivo cumprimento das obrigações previstas nesta Lei.”
Projeto de lei prevê que o simples fato de uma igreja não ter afixado um material informativo pode levá-la à interdição. Isso é desproporcional, autoritário e inconstitucional
Parece inofensivo? Não é. Trata-se de uma ameaça real e direta à liberdade religiosa e à autonomia das organizações religiosas, protegidas pelo art. 5.º, VI e VII, e pelo artigo 19, I, da Constituição Brasileira. Na prática, caso aprovada, a norma permitirá que igrejas sejam fechadas por ausência de um cartaz – cartaz esse que nem sequer é de responsabilidade da própria igreja, mas do poder público, que deveria afixá-lo nas redes públicas, nas avenidas, além de intensificar campanhas publicitárias, entre outras medidas. A situação é que, aprovado tal PL, o simples fato de a igreja não ter afixado um material informativo pode levá-la à interdição. Isso é desproporcional, autoritário e inconstitucional.
O artigo 44, §1.º, do Código Civil reconhece que as organizações religiosas possuem autonomia para se organizar, estruturar-se e se gerir segundo sua hierarquia e liturgia. Obrigar templos religiosos a obedecer a comandos estatais de natureza comunicacional em seus espaços sagrados viola frontalmente essa autonomia. Além disso, configura uma forma de interferência indevida na liberdade de culto e organização religiosa – pois a sanção prevista é, pasmem, o fechamento do templo.
A proposta também corrompe o espírito da laicidade colaborativa, modelo que rege o Estado brasileiro e que pressupõe respeito mútuo entre Estado e religiões. O papel do Estado não é invadir templos com imposições estatais, mas fomentar a colaboração voluntária com as confissões religiosas em temas de interesse público, como o combate à violência contra a mulher – pauta que, diga-se, já é acolhida e promovida por inúmeras igrejas com capilaridade, acolhimento e ações concretas muito mais efetivas do que muitas políticas públicas.
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A deputada-relatora, com toda a boa intenção, talvez não tenha se dado conta de que está autorizando, de forma abstrata e genérica, o fechamento de qualquer igreja no Brasil. Uma medida aparentemente singela – obrigar a afixação de um cartaz – torna-se instrumento de coerção estatal contra a fé. E, ao entregar tal poder a autoridades administrativas, sem critérios proporcionais claros e com regulação posterior a cargo do Executivo (artigo 1.º, § único do PL), cria-se um perigoso precedente de perseguição disfarçada de zelo. Se você quiser aprofundar no absurdo proposto por este PL e nas violações que ele acarreta basta acessar o profundo parecer do IBDR sobre o tema, que inclusive foi entregue para diversos deputados integrantes da comissão.
Como já nos alertava o constituinte de 1988, a liberdade religiosa só existe quando o Estado não embaraça o funcionamento dos cultos, tampouco interfere no seu modo de organização (artigo 19, I). Forçar igrejas a se tornarem vitrines de campanhas estatais, sob pena de interdição, é embaraço, sim – e dos mais graves. É transformar a autonomia das igrejas em ilusão, sujeita ao arbítrio de quem detiver o poder estatal da vez.
Se esse projeto for aprovado, mesmo a igreja mais simples, em uma comunidade periférica (e essas que vão sofrer mais), poderá ser fechada por não ter uma placa que talvez nem saiba que deveria ter – ou que o Estado não providenciou. E isso não é defesa da mulher. É instrumentalização de uma causa nobre para fins autoritários e ideológicos. A liberdade religiosa é um pilar civilizacional. E não será por boas intenções que deixaremos que ela seja desmontada; aliás, de “boas intenções” o inferno está cheio.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos






