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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Tempo de conciliação

Manifesto aos razoáveis

natal conciliação
Todos têm direito a suas convicções políticas, mas ela não pode transformar amigos e parentes em inimigos. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Vivemos um tempo curioso e perigosamente barulhento. Nunca se falou tanto, escreveu tanto ou se compartilhou tanto. E, paradoxalmente, nunca se disse tão pouco. Estamos todos roucos. Roucos de tanto gritar palavras de ordem, slogans vazios e frases prontas que dispensam reflexão e economizam pensamento. A polarização transformou o debate público em um campeonato de decibéis, no qual vence quem grita mais alto, não quem pensa melhor.

Este texto nasce como um manifesto. Não aos radicais nem aos militantes profissionais da indignação permanente, mas aos razoáveis. Àqueles que ainda acreditam que a civilização se sustenta mais pela força dos argumentos do que pelo volume da voz. Àqueles que não desistiram da ideia de que discordar não é destruir o outro, mas levá-lo a sério o suficiente para respeitar suas opiniões.

A civilização ocidental sempre foi fruto de um equilíbrio delicado entre três grandes heranças. De Atenas aprendemos a investigar as coisas, a perguntar antes de afirmar, a desconfiar das certezas fáceis. De Roma herdamos a razão prática, o senso de ordem, institucionalidade e soluções concretas para problemas reais. De Jerusalém recebemos a consciência moral, a noção de que nem tudo o que é possível é legítimo e nem tudo o que é eficiente é justo. Quando essas três dimensões caminham juntas, a sociedade avança. Quando se separam, a civilização adoece.

O que vemos hoje é uma ruptura profunda. Atenas foi substituída por memes. Roma, por impulsos. Jerusalém, por uma moral fluida, moldada ao gosto do momento ou ao humor das redes. O resultado é um ruído ensurdecedor. Muito barulho e pouca substância. Muitas palavras e poucas ideias. Muita reação e quase nenhuma reflexão.

O ano que se aproxima será decisivo porque nos colocará diante de uma escolha profunda: a chance de o diálogo vencer o monólogo

Nunca tivemos tanta capacidade de nos agregar em torno de causas. As redes sociais e o acesso instantâneo à informação nos deram engajamento. Ainda assim, boa parte de nós age como advogados sem conhecimento de causa. Simplificamos o que exige elaboração e profundidade, e complicamos o que é simples. A velha prática do nós contra eles estica a corda até o limite. Em uma era de extremos, um discurso ameno é tratado como traição, enquanto a ofensa se torna método. Falta respeito, falta civilidade. Estamos em uma guerra sem regras.

A lógica da polarização exige caricaturas. Reduzimos o outro a rótulos, demonizamos quem ousa discordar e passamos a tratá-lo como alguém movido por intenções malignas, um inimigo mortal. Assim, a militância ocupa o lugar da reflexão. Pouco a pouco, a esfera pública deixa de ser um espaço de construção coletiva e se transforma em um campo permanente de batalha.

Civilizações não colapsam apenas por crises econômicas ou derrotas militares. Elas declinam pela corrosão da linguagem, pela perda da confiança e pelo abandono da racionalidade. Quando toda divergência é interpretada como agressão e passamos a viver sob suspeita e hostilidade, entramos em nosso crepúsculo.

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O ano que se aproxima será decisivo. Não apenas por calendários eleitorais ou disputas de poder, mas porque nos colocará diante de uma escolha mais profunda. A chance de o diálogo vencer o monólogo. De as ideias substituírem as palavras de ordem e de os bons argumentos prevalecerem sobre a raiva que se põe na defensiva e inflama emoções produzindo respostas automáticas.

Não se trata de abandonar convicções. Ao contrário. Convicções sólidas não têm medo do debate. Elas se colocam à mesa do escrutínio público, onde o máximo que pode acontecer é reconhecermos a verdade no argumento do outro e, se necessário, mudarmos de posição. A razão prática romana nos lembra que sociedades não se organizam a partir de paixões momentâneas, mas de instituições estáveis e acordos possíveis. Atenas nos ensina que pensar exige humildade e disposição para se render à verdade. Jerusalém nos recorda que limites morais existem e que ultrapassá-los tem custo humano e civilizacional.

Aqui fazemos um chamado aos razoáveis. Aos que se recusam a ser sequestrados pelo ruído da turba e pela ideologia do “quanto pior, melhor”. Aos que compreendem que moderação não é ausência de coragem e aos que ainda acreditam que o espaço público pode ser um lugar de encontro, e não apenas de confronto.

A reconstrução começa com gestos simples, quase esquecidos: sentar à mesa, ouvir antes de responder, garantir o contraditório e discordar sem desumanizar

Talvez não sejamos maioria. Mas civilizações nunca foram salvas por maiorias barulhentas. Elas sobrevivem quando uma minoria persistente insiste em agir com responsabilidade. Em tempos de gritaria, ser razoável é um ato de resistência. Em tempos de vozes exaltadas, escolher a sobriedade é um gesto quase revolucionário.

Este é o nosso manifesto. Antes que reste apenas o silêncio que sempre chega depois que o barulho destrói tudo o que poderia ter sido dito.

A reconstrução começa com gestos simples, quase esquecidos: sentar à mesa, ouvir antes de responder, garantir o contraditório e discordar sem desumanizar.

Neste fim de ano, recebe ainda maior importância a antiga mensagem do Natal onde os anjos aparecem em um coral celestial cantando “Glória a Deus nas maiores alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. A glória de Deus nas alturas permanece inabalável; a outra parte cabe aos homens de boa vontade. Esse é o nosso apelo, aos que ainda não se embruteceram e não caminham pelas vias do suicídio coletivo. Os que ainda acreditam que podemos pintar um novo horizonte no futuro com mãos dadas pelo bem de todos.

Feliz Natal. E que o próximo ano seja verdadeiramente novo. Mais humano, mais racional e mais civilizado.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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