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Detalhe do tríptico “O Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus Bosch, mostrando o inferno.
Detalhe do tríptico “O Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus Bosch, mostrando o inferno.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Não há o que não haja, em breve o inferno será abolido e o diabo estará desempregado. Até o fim da matéria, o leitor entenderá o porquê. Enquanto mais de 360 milhões de pessoas sofrem perseguição extremada, com sentenças de morte e confisco de patrimônio em países como Afeganistão e Coreia do Norte, outros mais de 4 bilhões sofrem perseguição severa com fechamento de igrejas, exílio de religiosos, fechamento de rádios religiosas, fiscalização ferrenha do que se prega e se fala e pesadíssimas multas em países como Índia, China e Nicarágua. Além disso, países que têm as liberdades de crença e religiosa ainda intactas começam a sentir os efeitos da perseguição educada, o approach para as perseguições severa e extremada.

No dia 11 de janeiro, entrou no mundo jurídico brasileiro a Lei Federal 14.532, que pode virar um perigoso instrumento de perseguição educada no Brasil. Esta lei traz alterações importantes (e que saudamos) na Lei do Racismo, mas também cria uma possibilidade de perseguição aos religiosos em seu artigo 20-C: “Na interpretação desta lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.

Em suma, o artigo cria a possibilidade de o juiz de Direito dizer o que um líder religioso pode ou não ensinar aos seus fiéis. Na prática, além de juiz de Direito, o magistrado também será legislador moral e teológico, uma espécie de “Novo Moisés”. Em nossa nova obra, ONU Agenda 2030 e a liberdade religiosa, demonstramos a conceituação jurídica de religião, com o fim de compreendermos qual o sujeito de proteção das liberdades de crença e religiosa. Dito de outra forma: a efetivação de tais liberdades passa pela compreensão jurídica precisa do que é religião e, assim, entendermos quem são os tutelados pelas referidas garantias constitucionais.

Na perseguição extremada, fere-se o corpo. Na educada, destroça-se o íntimo, a alma

Pois bem, dentre os muitos conceitos que as doutrinas nacionais e internacionais formularam, o mais utilizado mundo afora – inclusive nos tribunais brasileiros – é o conceito substancial-objetivo. Este conceito apresenta como sendo religião aquele grupo de pessoas que têm uma relação com a(s) divindade(s), a partir de valores morais próprios que culminam em um culto, individual ou coletivo. É o famoso “DMC”: divindade, moralidade e culto. Se falta um destes três elementos, não estamos tratando de religião e, logo, o tal grupo carece de legitimidade para ter a proteção dos plexos de direitos decorrentes das liberdades de crença e culto; ao contrário, se tem os três elementos, é legítimo para usufruir de tais direitos.

Nessa tríade divindade/moralidade/culto, fica claro que o elemento da moralidade é o central de qualquer religião. São os valores morais, codificados ou não em livro(s) sagrado(s), que estabelecem a forma de relacionamento que a pessoa religiosa deve ter com a divindade, bem como a liturgia a ser seguida no ato de culto. Para o cristianismo, por exemplo, a definição de pecado é imprescindível, visto que “o salário do pecado é a morte” (Romanos 6,23), e a morte de que São Paulo fala aqui é a morte eterna, pela qual não passará o “bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele mil anos” (Ap 20,6), sendo a segunda morte o inferno: “E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte” (Ap 20,14). O Diabo, que as enganava, foi lançado no lago de fogo que arde com enxofre, onde já haviam sido lançados a besta e o falso profeta. Eles serão atormentados dia e noite, para todo o sempre. A definição de pecado é vital para o cristão, pois sem essa definição – segundo um de seus importantes dogmas – ele poderá se desviar no caminho e sofrer os danos da segunda morte: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: O que vencer não receberá o dano da segunda morte” (Ap 2,11).

Esta é uma pequena amostra dos valores morais de uma religião e de sua essencialidade para a vida da pessoa religiosa. O fiel precisa ter contato com os valores morais de sua religião para, então, orientar sua vida e obra conforme esses valores. As liberdades de crença e religiosa protegem exatamente essa dinâmica: a liberdade de crença protege a adesão, manutenção e/ou mudança de crença da pessoa religiosa, enquanto a liberdade religiosa protege o exercício de sua escolha na esfera pública, seja expressando sua fé, ensinando seus pares e liderados sobre ela, buscando conversos por meio da divulgação e pregação de sua fé, visitando e oferecendo assistência religiosa aos segregados da sociedade, cultuando individual ou coletivamente, publica e privadamente, sua divindade, organizando-se institucionalmente e, por fim, escusando-se de prestação obrigatória, quando esta ofende o núcleo de sua fé, ou seja, a moralidade.

E, aqui está o perigo do artigo 20-C da nova Lei 14.532. Imagine a hipótese de um pregador, líder religioso, estar no pleno exercício de seus direitos constitucionais de ensino religioso, culto, organização religiosa, expressão da fé e proselitismo, em um púlpito, na sua igreja, falando sobre o pecado, sobre como o pecado afasta o ser humano de Deus e sobre como, se não houver arrependimento e perdão, o pecado poderá ter o condão de gerar o dano eterno da segunda morte. Disto isso, imagine se alguém presente nesse culto ou cerimônia religiosa sinta-se incomodado e entenda que tal fala foi constrangedora e lhe gerou medo – aliás, parece-me natural as pessoas terem medo do inferno. Então, em ato seguinte, essa pessoa ingressa com um processo judicial contra a igreja e o tal pregador com fundamento na nova lei, e o juiz da causa faz uma exegese no sentido de que tal fala se adequa ao artigo 20-C. Qual o resultado? Um leading case que, em escala nacional, pode pôr fim ao cristianismo, ao judaísmo, ao islamismo e a muitas outras religiões que tenham como núcleo existencial uma concepção semelhante de céu e inferno (este parece ser o interesse de alguns, na verdade).

O efeito de um religioso ser impedido judicialmente de falar de céu e inferno no espaço público tanto em um culto ou missa, quanto em qualquer outro lugar, é igual ou maior que a degola a que religiosos são submetidos em países com perseguição extremada. Na perseguição extremada, fere-se o corpo. Na educada, destroça-se o íntimo, a alma. Cria-se a possibilidade de que vários “Moisés de toga” por aí criem dogmas religiosos, dentre os quais a abolição do inferno, violando a primeira das liberdades, sobrando até mesmo para o diabo. Que tempos, senhores, que tempos!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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