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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

O gambito na democracia: aqui não!

O Gambito da Rainha, série da Netflix. (Foto: Phil Bray/Netflix)

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Essa semana terminei a minissérie: Gambito da Rainha (recomendo efusivamente). Lembrei-me imediatamente do início de nossa carreira como advogados, lá no distante 2004. Jean e eu, recém formados, poucos clientes, passávamos os finais de tarde jogando xadrez. Aos poucos as partidas se escasseavam, seja porque o Jean e os demais colegas estavam cansados de perder (risos), seja porque os clientes (graças a Deus) aumentavam. Vamos lá, o que xadrez tem a ver com o assunto que pretendemos tratar? Muita coisa.

O xadrez é um jogo que termina com o xeque mate no rei. Para alcançar o objetivo é necessário desenvolver uma estratégia que, dependendo do oponente, pode resultar em diversas variações, consequentemente distintas jogadas e muita perspicácia de ambos os jogadores. Dito isto, vamos ao tema: democracia no Brasil.

Ultimamente temos a impressão de que alguns brasileiros não sabem como funciona uma democracia. Vou nominá-los: alguns grupos minoritários e grande parte da mídia brasileira. Parece, para estes, que a democracia é um grande jogo de damas, simples e objetivo, resumindo-se em eleições a cada dois anos, no direito de votar e ser votado, e na obrigatoriedade de que suas ideologias, sem nenhum respaldo no tabuleiro da vida, sejam as únicas jogadas possíveis.

Na democracia estilo “jogo de damas”, você não pode emitir opiniões, manifestar o que pensa, ter liberdade de expressão, opinião ou liberdade religiosa que não se enquadrem nas poucas jogadas disponíveis. Você pode votar, ser votado e, principalmente, dobrar-se para o que a minoria impõe como tabu. Podemos, por exemplo, expressar nossa indignação com o casamento, dizer aos quatro cantos que casamento é “coisa” para loucos. Também, podemos dizer que o sexo dentro do casamento, ou, melhor, que o sexo heterossexual é ultrapassado, típico de pessoas ignorantes que não estão abertas para o novo. Por que podemos dizer tais coisas? Alguns podem dizer que vivemos em uma democracia. Mas, cá entre nós, não é mais por causa disso. Podemos dizer tais coisas porque não violam as poucas jogadas possíveis do tabuleiro de damas da minoria. Vamos para outro exemplo: experimente dizer que o sexo entre dois homens é pecado ou, que no sexo entre eles pode existir uma vulnerabilidade maior de se contrair HIV. Pronto, o mundo desaba. Grandes jornais lhe colocam na capa como homofóbico, militantes, prometem processos, em suma: você é apedrejado em praça pública. Pouco importa se sua fala foi cordata e baseada em sua crença ou em números estatísticos. No caso da vulnerabilidade dos homens homossexuais, por exemplo, foi matéria na BBC Brasil em 01 de dezembro de 2016, dia internacional de combate a AIDS, veja aqui: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-37981194

Vejamos um exemplo: recentemente o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Dr. André Mendonça, escreveu em um tweet: “Espero que a Justiça garanta os direitos desta cidadã brasileira, assim como tem garantido os direitos à liberdade de expressão de quem pensa em sentido contrário”. O Ministro da Justiça que, como o próprio nome diz, tem como uma de suas principais funções perseguir a promoção da Justiça no Brasil, e, no cumprir de sua função, apenas e tão somente denunciou a forma injusta na qual a cantora evangélica Ana Paula Valadão estava (e está) sendo tratada nas redes sociais e por boa parte da mídia brasileira, em uma situação na qual ela simplesmente exercia suas liberdades de expressão, opinião e religiosa, isto lá no longínquo ano de 2016. No caso a cantora apenas reiterou suas convicções religiosas e lembrou da estatística referida pela BBC e o que aconteceu? Outra sessão de apedrejamento e linchamento público. Atrasada, claro. Porque lá em 2016 ainda se jogava xadrez no Brasil, ou seja, a democracia não se resumia a vontade das minorias.

Mas o que é Democracia? A democracia é muito mais complexa e não se resume as poucas jogadas disponíveis na dama dos autoritários de hoje. Alexis de Tocqueville ensinava que a democracia se sustenta quando a maioria permite espaço, expressão e voz a minoria, inclusive que esta possa se tornar a maioria, promovendo, assim, o jogo democrático. Noberto Bobbio, para não ficarmos apenas com o liberal Tocqueville, também diz em suas regras do jogo democrático que a maioria nunca deve limitar os direitos da minoria, especialmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições. Esta é apenas uma das seis regras de Bobbioi.

No Brasil tem sido o contrário e ainda sem espaço e voz para o outro grupo: vivemos a ditadura da minoria em que a maioria não pode ter voz. A minoria impõe as regras e a maioria que cumpra. Se não cumprir, sessão pública de apedrejamento. E a sessão de apedrejamento de hoje é muito pior que aquela dos tempos bíblicos. Naquela época algumas poucas pessoas assistiam a tal sessão. Hoje, o Brasil e mundo assistem tudo no camarote de seu smartphone, tablet ou notebook.

Não existe democracia sem cidadania e pluralismo político. Está cravado no artigo 1º da Constituição brasileira. Cidadania implica em exercício pleno das liberdades civis fundamentais, dos direitos políticos e sociais, como consagrou Marshall; enquanto pluralismo político implica em voz. Todos, maioria ou minoria, não importa, devem ter o direito de se manifestar e emitir suas opiniões em qualquer espaço, público ou privado.

Por fim, de passagem, alguns podem perguntar: e o crime da homofobia? Ainda não existe no Brasil, a ADO 26 está em pleno julgamento. E, quando existir, tal crime não terá o condão de impedir que tenhamos liberdade de expressão e de opinião. Não vivemos um Estado de Exceção ou um regime autoritário, pelo menos não no papel. Não vamos aceitar nenhum gambito aqui, seja da rainha, do rei, do cavalo, ou qual for. Somos um país democrático e vamos lutar pela nossa liberdade de expressão: Xeque mate!

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