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Detalhe de "Moisés desce do Sinai", de Gustave Doré.
Detalhe de “Moisés desce do Sinai”, de Gustave Doré.| Foto: Reprodução/Domínio público

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República brasileira, prevista no artigo 1.º, III da Constituição brasileira. Além de ser um pilar de nossa ordem constitucional, trata-se do princípio irradiador de todo o sistema de garantias e liberdades previstos no plexo de direitos consagrados por toda a nossa Carta Política. As liberdades existem, ao fim e ao cabo, para tornar nossas vidas dignas, ou seja, como meios para alcançarmos o bem comum.

A dignidade da pessoa humana é a pedra de toque dos direitos humanos. O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Este é o artigo que dita o ritmo de todo o texto da DUDH: a dignidade está no fato de que todos os seres humanos são iguais, não obstante sua raça, sexo, cor, religião, etnia, condição social, opção ou orientação sexual, entre outros. E todos são dotados de razão, por isso são um fim em si mesmos, sendo livres, devendo ter suas liberdades e propriedades protegidas pelo Estado. O Estado é meio para que o ser humano floresça, assim como a sociedade em que ele está inserido.

Mas, qual a origem da dignidade da pessoa humana? É comum vincular a dignidade da pessoa humana com a democracia, isto porque em regimes não democráticos é comum a opressão de determinados grupos, bem como a concessão de privilégios para uma classe política ou para um grupo social específico em detrimento de outro. Tal postura é um atentado à dignidade, porque afinal de contas todos são iguais e, se todos são iguais, concessão de privilégios e opressão não se coadunam.

A dignidade está no fato de que todos os seres humanos são iguais, não obstante sua raça, sexo, cor, religião, etnia, condição social, opção ou orientação sexual

Olhando para o passado, especificamente há quase 4 mil anos, conhecemos a história de um povo que, oprimido no Antigo Egito, foge para o deserto e, ao chegar ao Monte Sinai (Êxodo 20), recebe, por meio de seu líder Moisés, duas tábuas com dez regras morais objetivas, escritas pelo próprio dedo de Deus. Essas regras são o Decálogo; depois delas, muitas outras são entregues ao povo hebreu, que, entrando na terra prometida (Canaã), estabelecem uma ordem social, política e jurídica baseada nestas leis.

Aqui temos a história da confederação das 12 tribos, contada nos livros de Josué e Juízes da Bíblia Sagrada; era governada diretamente por Deus, por meio das leis que Ele pessoalmente entregou. Apenas quando surgia algum problema militar específico, era escolhido um líder temporário (juiz) para enfrentá-lo e resolvê-lo.

Mas o que isso tem a ver com dignidade da pessoa humana? Tudo! Isso porque enquanto as nações vizinhas (Mesopotâmia, Pérsia e Egito) organizavam sua sociedade política a partir do cosmos, totalmente hierarquizada, com classes de pessoas e com a ideia de que o governante era o próprio Deus encarnado ou um mediador, para os hebreus todos eram iguais, e de igual forma deviam cumprir e respeitar a lei. Na tradição oral deste povo – posteriormente registrada no que os cristãos hoje chamam de Antigo Testamento –, esta dignidade está ligada já ao relato da criação do ser humano, dotado de dignidade posto que feito “à imagem e semelhança” do próprio Criador. Mesmo com a criação do império, os reis também deviam ser submetidos à lei: “E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus, para guardar todas as palavras desta lei, e estes estatutos, para cumpri-los” (Deuteronômio 17,19).

Como ensina Boécio em seus diálogos com a filosofia na obra Consolação da Filosofia, o ser humano possui dignidade humana, porque Deus o criou à sua imagem e semelhança (Gen 1,26-28) e é em razão disso que Jesus ressurreto, quando ascende aos céus diz: “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (Atos 1,8). Ou seja, todos devem ser testemunhas de Cristo para todos: Jerusalém, Judeia, Samaria e confins da terra. Alguns capítulos depois, no mesmo livro de Atos, São Pedro afirma: “Agora percebo verdadeiramente que Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo” (10,34), o que é repetido por São Paulo, em sua carta aos Romanos: “Porque para com Deus não há acepção de pessoas” (2,11).

Gregório de Nissa, no século 4.º, afirmou: “Pois Jesus Cristo conhece o valor da natureza humana, disse que o Cosmos inteiro não é digno de ser trocado por uma alma humana. Quem pode comprar ou vender um homem, uma vez que percebas que ele foi feito à imagem de Deus?” Alguns séculos mais tarde Tomás de Aquino arremata, com seu brilhantismo contumaz: “O homem é considerado imagem de Deus, não pelo corpo, mas pelo que o torna mais excelente que os outros animais; por isso, a Escritura, depois de ter dito (Gn 1,26): ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’, acrescenta: ‘O qual presida aos peixes do mar’ etc. Ora, o homem é mais excelente que todos os animais, pela razão e pelo intelecto. Donde, pelo intelecto e pela razão, que são incorpóreos, é a imagem de Deus”.

É no cristianismo que a ideia de dignidade humana é formada e amadurecida

Não existe gradação da Imago Dei, isto é, Deus não fez uns mais e outros menos parecidos com Ele (o que é diferente de filiação, mas esse é um papo para outro artigo). Esse é o fundamento dos Dez Mandamentos e de toda a lei judaica. Esse é o fundamento do cristianismo, como o próprio Cristo afirma no evangelho de São Mateus, capítulo 22,39-40, que é uma confirmação da própria lei, como está em Levítico 19,18. Vejam os textos, respectivamente: “O segundo [mandamento], semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” e “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”.

Por fim, vejam o que disse Jesus: “Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?” (Mateus 16,26). Ou seja, uma vida humana tem maior valor que o mundo inteiro.

Percebe-se, assim (e isto que economizamos em referências), que é no cristianismo que a ideia de dignidade humana é formada e amadurecida. Se hoje temos uma DUDH, é porque as nações aprenderam que sem as raízes profundas de valores morais objetivos ficaríamos à mercê de homens como Hitler, Stalin, Mussolini ou Robespierre.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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