A última da vez da República da Laicidade Colaborativa brasileira não foi tão colaborativa assim. Aconteceu na cidade gaúcha de Sapucaia do Sul: a vereadora Veridiana Pacheco, uma provável leitora da nossa obra A laicidade colaborativa brasileira, tentou colocar em prática nosso sistema de laicidade colaborativa em sua cidade e levou um parecer contrário da procuradoria jurídica do município.
Em 11 de maio de 2022, no uso de suas atribuições constitucionais – definidas no artigo 30 da Constituição brasileira e no artigo 54 da Lei Orgânica Municipal –, a vereadora Veridiana protocolou projeto de lei na Câmara de Vereadores de Sapucaia do Sul que “regulamenta o serviço voluntário de assistência espiritual individual a cidadãos, prestada por Capelães nos estabelecimentos de saúde do Município de Sapucaia do Sul (RS)”.
O PL 017/2022 , dentre outros dispositivos, assegura (no artigo 1.º) “o exercício do Capelão formado e credenciado na entidade de regulamentação da classe (Ordem dos Capelães do Brasil) a assistência aos munícipes, a livre prática de seus serviços aos assistidos e seus familiares, permitindo-lhe a participação nos serviços espirituais de todas as religiões organizados nos estabelecimentos descritos pelo artigo primeiro, em favor do interesse da coletividade”.
A própria Constituição determina que a lei deve regular o exercício do direito de assistência religiosa pelo fiel segregado
O artigo citado demonstra a total harmonia com o sistema constitucional brasileiro de liberdades e com a teoria brasileira de liberdade religiosa. O artigo 5.º, VII da Constituição Federal de 1988 consagra: “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. Trata-se de um dos direitos do cluster right da liberdade religiosa conhecido como o “direito de assistência religiosa”. O sagrado e a relação do fiel com a sua divindade e suas práticas litúrgicas estão intimamente ligados com a sua dignidade humana (que é fundamento da República, diz o artigo 1.º, III da Constituição); mesmo segregado da sociedade por decisão do juízo criminal ou por doença, o ser humano não pode ser alienado de sua religiosidade pelo Estado, sob pena de ter violada sua liberdade religiosa, bem como sua própria dignidade.
A própria Constituição determina que a lei deve regular o exercício do direito de assistência religiosa pelo fiel segregado. A lei federal que regula o tema é a 9.982/2000, sendo bem singela, trazendo apenas dois artigos: o primeiro assegurando à assistência e o segundo, estabelecendo que os religiosos devem se submeter a questões mínimas de segurança, por questões óbvias.
Além disso, a Constituição brasileira, em seu artigo 19, I, elege o sistema colaborativo de laicidade em que o Estado e as religiões devem colaborar entre si em busca do interesse público. Os dois dispositivos citados e tantos outros previstos na Constituição impõem aos entes federados que se relacionem com a religião e seus representantes de forma benevolente, colaborativa e com igual consideração, conforme escrevemos em A Laicidade Colaborativa Brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988.
Dito isto, vejamos, então, o artigo 1.º, parágrafo único do referido PL: “Os serviços de Capelania poderão ser realizados no Município em igualdade religiosa, sem distinção de credo, respeitando o direito de crença de cada cidadão”. Isto é, garantida aqui uma das características que fazem a laicidade colaborativa brasileira ser única no mundo: a igual consideração!
O leitor, a essa altura, deve estar se perguntando: “como o advogado da prefeitura disse ‘não’ para este PL?” Pois então, nas palavras do procurador: “por entender que a apresentação de proposição que vise a regulamentação de serviços prestados nos estabelecimentos da Rede Municipal de Saúde é ato de iniciativa privativa do Prefeito Municipal”.
Os procuradores usam dispositivos da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul que versam sobre a iniciativa privativa do Poder Executivo de criar e estruturar as suas secretarias e órgãos. Ora, o que isto tem a ver com o PL 017/2022? O PL não “visa criar, modificar ou implementar estrutura estatal, nem tampouco organizar os serviços da administração pública municipal, mas tão somente regulamentar no âmbito municipal um direito já previsto e garantido na Constituição da República, bem como na Lei Federal 9.982/2000, exercido em todo o território nacional, a saber, a prestação de assistência religiosa em estabelecimentos de internação, materializado no serviço voluntário de assistência espiritual individual a cidadãos, prestada por Capelães nos estabelecimentos de saúde do Município de Sapucaia do Sul/RS”, como muito bem explicou o Grupo de Estudos Legislativos e Constitucionais do IBDR em brilhante parecer.
Além de não criar ou alterar em nada a estrutura jurídica e administrativa do poder público municipal, o projeto de lei, inclusive pelo caráter voluntário dos serviços de capelania, não gera nenhum gasto à administração pública de Sapucaia do Sul
Isto é, além de não criar ou alterar em nada a estrutura jurídica e administrativa do poder público municipal, o projeto de lei, inclusive pelo caráter voluntário dos serviços de capelania, não gera nenhum gasto à administração pública de Sapucaia do Sul e, consequentemente, não tem necessidade de nenhuma dotação orçamentária. Logo, como assim, “iniciativa executiva do prefeito”? Em conversa com a vereadora, autora do projeto, tivemos a impressão de que existe uma contrariedade ao escopo do projeto, ou seja, a possibilidade de assistência religiosa aos segregados, visto que a vereadora entrou com PL semelhante em 2021 e o texto foi rejeitado. No mesmo ano, ela fez uma indicação no mesmo sentido ao prefeito, que não andou; e, agora, em 2022, ingressa com outro PL, lapidado em relação ao anterior, recebendo nova negativa. Por quê, senhor prefeito?
Mais uma ação em que a laicidade colaborativa seria prestigiada acaba sofrendo obstáculos por uma visão positivista e, por que não?, laicista à la francesa da relação entre Igreja e Estado. Mas sigamos vigilantes, porque o preço das liberdades é a eterna vigilância, já diria algum filósofo.
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