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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Influência invisível

Quando a religião molda até as cidades

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Plano Piloto de Brasília: Lucio Costa disse ter se inspirado no sinal da cruz, mas relevo da região forçou mudança de formato. (Foto: Axelspace Corporation/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license)

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É comum ouvirmos atualmente que “o Estado é laico”. Um mantra repetido à exaustão como quem recita um exorcismo para afastar qualquer influência religiosa do espaço público. Mas será possível mesmo “limpar” a esfera pública de algo que é parte intrínseca da alma e da identidade cultural brasileira? A realidade nos mostra que não.

Basta olhar com atenção: das pequenas capelas rurais à monumentalidade arquitetônica da capital federal, a religião deixou marcas profundas e inconfundíveis. Um exemplo curioso vem dos antigos formulários de transporte marítimo usados no Brasil até depois da República. Entre diversas informações pessoais exigidas aos passageiros, lá estava uma pergunta: “Qual a sua religião?” Ora, em plena República, num contexto supostamente secularizado, ainda importava saber em qual divindade ou tradição religiosa o viajante depositava sua fé. Essa simples linha num formulário antigo diz muito sobre como a religião continuava influenciando até as burocracias mais inesperadas do Estado.

Reconhecer a religião na esfera pública não é um ato de proselitismo, mas um exercício de realismo histórico e sociocultural

Se olharmos para algo aparentemente tão secular como as bandeiras brasileiras ao longo de toda a história, a influência religiosa está lá, discretamente presente na forma de cruzes. A bandeira da Ordem de Cristo, presente nas caravelas portuguesas que aportaram aqui em 1500, era essencialmente um símbolo religioso. Ainda hoje, diversas bandeiras estaduais e municipais carregam essa herança. Isso nos diz que o Brasil, apesar de laico na teoria, jamais conseguiu (e talvez nunca tenha desejado verdadeiramente) deixar de expressar sua religiosidade nas cores e formas dos seus símbolos.

Mas é talvez no ousado projeto de Brasília, o Plano Piloto de Lúcio Costa, que essa interseção entre o religioso e o civil alcança seu ápice contemporâneo e sua mais intrigante polêmica. Muito se discute sobre a inspiração original do desenho da capital federal. Teria Costa intencionalmente planejado a cidade em forma de cruz? Ou seria apenas uma coincidência arquitetônica, resultado da funcionalidade urbanística?

Na realidade, o próprio Lúcio Costa esclareceu essa questão em seu relatório de 1957. Ele descreve o projeto como “o gesto primário de quem assinala um lugar no mapa ou dele toma posse”, representado por dois eixos que se cruzam em ângulo reto – ou seja, o sinal da cruz. Embora o formato da cidade seja frequentemente comparado ao de um avião ou pássaro, essa associação surgiu posteriormente, após a adaptação de um dos eixos à topografia local. Originalmente, o traçado em forma de cruz simbolizava a tomada de posse e a fundação de um novo espaço.

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Esses exemplos mostram como a religião, longe de ser apenas uma experiência privada, é parte indissociável da vida coletiva, moldando não apenas corações e mentes individuais, mas influenciando decisões práticas e estruturais que afetam o cotidiano das cidades. Reconhecer a religião na esfera pública não é um ato de proselitismo, mas um exercício de realismo histórico e sociocultural. Afinal, o fenômeno religioso está tão entrelaçado à formação da identidade brasileira que ignorá-lo seria negar um pedaço essencial de nós mesmos.

E talvez seja justamente essa influência discreta, mas persistente, da religião que ajuda a apurar a visão sobre como podemos melhor contribuir para o bem comum, construindo juntos uma sociedade mais consciente e inclusiva, sem jamais abrir mão de quem somos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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