Nesta semana tivemos um vislumbre do que é a atuação de uma corte constitucional. O Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento de dois processos envolvendo temas de direitos fundamentais – a liberdade religiosa para além da simples “liberdade de culto”, mas sim da liberdade de crença, no sentido do pautar comportamento por conta do imperativo (não da opção) de consciência.
O tema geral de ambos os recursos se dá para 1. a possibilidade de realização de provas em concursos públicos em dia ou hora alternativa à prevista no edital quando conflita com o chamado “dia de guarda”; e 2. a possibilidade de se prever prestações alternativas no curso do cargo ou função públicos, mesmo no período de estágio probatório.
A grande questão estava na interpretação da corte sobre o artigo 5.º, VIII, da Constituição, cujo texto diz: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
STF promoveu um grande avanço para a reafirmação de que a natureza da laicidade brasileira é de matriz colaborativa, e não apenas uma mera tolerância com a fé como um elemento indesejável na sociedade
Ao longo do julgamento, que se estendeu por três sessões, formaram-se algumas correntes diversas. A primeira, formulada pelo ministro Dias Toffoli, relator de um dos processos, no sentido de que não haveria direito público subjetivo (um direito líquido e certo para qualquer do povo que invocasse a escusa de consciência baseada na crença) diante de ato administrativo. Mostrou uma vocação hobbesiana, em que o Estado é o soberano sobre a vida dos particulares, e estes, quando conflitam suas consciências com um desejo da abstração política, devem se curvar. Uma visão bem específica de laicidade simpliciter dependente da benevolência momentânea do governo do dia, posto que nem mesmo a negativa fundamentada buscou exigir como comportamento mínimo do servidor público que apreciasse o pedido feito.
Houve também uma discussão jurídica de qualidade na maioria dos votos, especialmente dos que acolheram a ponderação entre os direitos e garantias fundamentais como a liberdade religiosa, frente à necessidade de acomodação dos princípios que regem a administração pública (entre eles, a impessoalidade). Houve, ainda, votos que se esquivaram completamente do tema, como o do arrivé ministro Nunes Marques, que se saiu com a justificativa de que haveria necessidade de o Congresso Nacional disciplinar a prestação alternativa; ou do ministro Gilmar Mendes, que estava preocupado com o custo financeiro para o Estado de manter esta garantia, diante das limitações do federalismo fiscal e o financiamento de diversos direitos previstos no texto constitucional. O ministro Marco Aurélio (aquele que gosta das filigranas processuais pelas quais, às vezes, acaba por servir a uma tecnocracia pouco benfazeja à democracia que depende da ordem e da justiça para funcionar) tentou dissuadir os colegas de conhecerem os recursos por defeitos formais.
O ministro Edson Fachin, relator do segundo recurso, abriu a divergência no sentido de que a garantia da liberdade religiosa deveria ser respeitada, posto que é direito humano fundamental, no que foi acompanhado por Cármen Lúcia, Luiz Fux (presidente da corte), Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski.
Por fim, foi a partir da leitura do voto do ministro Alexandre de Moraes que as teses começaram a tomar forma, até sua redação final, que ficou assim:
RE 611874: “Nos termos do art. 5.º, VIII, da Constituição Federal, é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital ao candidato que invoca escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à administração pública, que deverá decidir de maneira fundamentada”.
ARE 1099099: “Nos termos do art. 5.º, VIII, da Constituição Federal, é possível a administração pública, inclusive durante o estágio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que, presente a razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento do exercício de suas funções e não acarrete ônus desproporcional à administração pública, que deverá decidir de maneira fundamentada”.
O STF cumpriu importante papel ao demonstrar a necessidade de termos a religião como uma garantia fundamental para a paz social, o desenvolvimento humano
Mesmo sem o reconhecimento de um direito público subjetivo que obrigue o Estado a acomodar as escusas de consciência por crença religiosa de forma a criar embaraços não razoáveis – especialmente em datas de provas objetivas em concursos vestibulares –, houve um grande avanço para a reafirmação de que a natureza da laicidade brasileira é de matriz colaborativa, e não apenas uma mera tolerância com a fé como um elemento indesejável na sociedade. Além disso, ao reafirmar a necessidade de justificativa do órgão estatal quando um cidadão alega escusa de consciência, limita-se a ação do Estado, coloca-se aparas no Leviatã, retira-se do Príncipe um pouco de suas tendências absolutistas. E isto é extremamente saudável para o aprimoramento das instituições democráticas, no que merece uma moção de aplauso à decisão de nossa suprema corte.
Em suas razões, o ministro Alexandre de Moraes foi bastante enfático ao dizer que a laicidade brasileira deve ser vista de maneira sistêmica no texto constitucional. A iniciar pelo preâmbulo, em que a sociedade política brasileira, representada pelo constituinte originário, já trouxe o testemunho divino (“sob a proteção de Deus”), diferente até dos outros textos, quando a redação era “invocando a proteção de Deus” (quiseram se precaver; vai que Deus, se apenas invocado, resolve não proteger...). Depois, no grande artigo das garantias civis fundamentais (o artigo 5.º), onde o feixe de liberdade religiosa nas suas diversas dimensões – consciência, crença e expressão – é ali estabelecido. Passando pela ordem social e econômica, no estabelecimento de caridades públicas e o princípio da subsidiariedade, e também no capítulo das imunidades tributárias (artigo 150, VI, “b”) em que o Estado tem limitação de instituir impostos sobre os templos de qualquer culto mostrando o status de parceiro que a religião ocupa na busca do bem comum.
É neste espírito que o STF cumpriu importante papel ao demonstrar a necessidade de termos a religião como uma garantia fundamental para a paz social, o desenvolvimento humano, cumprindo os objetivos constitucionais de igualdade e os fundamentos da cidadania e dignidade humana. Ponto para o STF!
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