No mês passado uma situação inusitada mostrou novamente o peso do que entendemos por laicidade colaborativa, e como a mesma se expressa na sociedade brasileira. Como falamos há pouco aqui na coluna, a tolerância religiosa é uma atitude – na concordância ou na discordância respeitosa – dentro de um ambiente maior, o da liberdade. Mas isso não tem sido assimilado por muitos.
No início do ano um tatuador maranhense recebeu, por um aplicativo de mensagens privadas, uma solicitação de serviço. O pedido era para que uma frase fosse tatuada no braço da cliente com os dizeres: “Oxalá está em tudo, até mesmo em mim”, em homenagem ao seu orixá; ela era praticante do tambor de minas, culto de matriz africana.
Pelo mesmo aplicativo, o tatuador recusou o serviço ao alegar que, por ser cristão, não poderia realizá-lo sem prejuízo de sua consciência. Por conta disso também se prontificou a indicar outro estúdio que poderia realizar o trabalho. A cliente, por sua vez, ficou inconformada com a atitude do prestador de serviço e registrou um boletim de ocorrência, alegando intolerância religiosa e, portanto, tipificando a conduta como de potencial injúria racial. Fez ainda um desabafo em seu perfil de mídia social, atraindo muitos simpatizantes ao seu relato, e a declaração de abertura de inquérito policial, com acompanhamento do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil. O perfil do tatuador passou a ser alvo de constantes ataques nas últimas semanas, com a já conhecida política de “cancelamento” por parte de quem tomou partido da cliente.
Está muito fácil encontrar, na sociedade hipersensível que as últimas décadas criou, ofensas para todo e qualquer tipo de discordância
O que, porém, caracteriza o crime de injúria racial? Será que o caso comporta um comportamento criminoso? Será que há espaço para alguém recusar-se a prestar serviço por motivo de consciência religiosa sem que isso seja um ato intolerante?
A injúria racial é crime tipificado no artigo 140, §3.º, do Código Penal. A cabeça do artigo (o chamado caput) define a injúria como sendo uma ofensa à “dignidade ou o decoro”. É uma das espécies dos chamados crimes contra a honra, sendo as outras a calúnia (a imputação falsa a alguém de fato criminoso, artigo 138) e a difamação (a imputação ofensiva à reputação de alguém, artigo 139). Diz-se que a difamação é uma ofensa à honra subjetiva – aquela que é fruto de uma construção social da vítima, seu bom nome em função da carreira profissional, por exemplo; já a injúria é uma ofensa à honra objetiva – aquela que fala de características inatas ou intrínsecas à vítima, como a forma física, a etnia, origem ou a crença religiosa, por exemplo. É este o espírito da qualificadora do §3.º do artigo 140, que diz exatamente isso: “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. Tanto é grave que é a única modalidade criminosa de injúria cuja pena passa de detenção para reclusão.
Inclusive, não se pode confundir a injúria racial com o crime de racismo. Este é tipificado não no Código Penal, mas na Lei 7.716/1989, punindo o preconceito de raça ou cor; posteriormente, pela Lei 9.459/2013, também foram equiparados ao racismo o preconceito de etnia, religião e procedência nacional. A diferença é justamente o alcance da ofensa. Enquanto na injúria a vítima é individualizada, no racismo a vítima é a coletividade protegida pela lei. Quanto maior o potencial danoso do crime, maior a pena. A injúria racial tem previsão de reclusão de 1 a 3 anos, enquanto o racismo pode chegar à pena de 5 anos – o que equivale a dizer que, no segundo caso, o condenado realmente deverá ser encarcerado, se não no regime fechado, pelo menos no semiaberto, no início de cumprimento da pena.
Como, porém, identificar uma conduta como sendo de injúria com esta agravante? É um crime que necessita do chamado dolo, ou seja, da identificação inequívoca de intencionalidade do agente. A ideia é praticar uma ofensa direta à vítima por parte do agressor, querer resultar em humilhação ou aborrecimento, buscar realmente ferir com as palavras depreciando o outro por causa de sua condição étnica, religiosa etc. Não há “injúria culposa”; ou se deseja ou não se deseja o resultado. É o triste caso repetidamente visto nos estádios de futebol Brasil afora. É muitas vezes o caso de impropérios ditos por pessoas de espectros políticos diversos quanto aos oponentes. É também o caso de atitudes desrespeitosas diante da fé alheia.
Porém, o caso que comentamos, com os elementos que temos à vista, parece estar bem longe de uma situação de injúria religiosa. O tatuador, ao recusar o trabalho, usou uma frase que incomodou a cliente. Ele disse: “infelizmente não trabalhamos com esse tipo de tattoo”. A cliente, então, pergunta se o “tipo de tattoo” é o fato de escrever frases ou pela frase em si. O tatuador responde que não faz alguns tipos de tatuagens por ser cristão. Ou seja, pelos elementos materiais à disposição – a conversa pelo aplicativo de mensagens –, somente olhos intencionais verão intenção de ofender. Na verdade, parece ter havido, na primeira frase, um titubear diante do que era o compromisso de consciência do profissional, e ele tentou a “saída fácil”, esquivando-se do problema. Como a cliente insistiu, o tatuador admitiu o real motivo, sua consciência religiosa. Em nenhum momento, porém, as palavras do tatuador foram ofensivas. Ao que se tem notícia, a conduta prévia do mesmo não denota comportamento compatível com alguém que busque desrespeitar o próximo por sua expressão religiosa.
Este caso lembra uma situação análoga vivida pelo confeiteiro americano Jack Phillips, proprietário da Masterpiece Cakeshop, no estado do Colorado, que foi processado pela comissão de direitos civis daquele estado por se recusar a fazer o bolo de casamento para um casal homoafetivo. Ele ofereceu vender qualquer bolo de sua loja, apenas não querendo fazer uma encomenda “sob medida” porque esta união contrariava suas crenças religiosas a respeito do casamento. Em jogo, a liberdade de se operar um negócio de acordo com a orientação religiosa do proprietário e a liberdade de expressão artística sem ter de comprometer a consciência. Após uma árdua batalha judicial, o confeiteiro saiu vencedor e a liberdade religiosa prevaleceu.
Tolerância implica respeito. Discordar com educação não é ser intolerante
Aqui no Brasil as condições de temperatura e pressão são diferentes. Temos um traço de tolerância religiosa muito maior do que em outros países. Historicamente convivemos bem. Vivemos a era da manipulação de sentimentos nem mais por pessoas, mas por algoritmos (quem já assistiu a O Dilema das Redes sabe do que estamos falando). Está muito fácil encontrar, na sociedade hipersensível que as últimas décadas criou, ofensas para todo e qualquer tipo de discordância. Precisamos aproveitar a janela de liberdade religiosa que temos e transcender a estas questões. Tolerância implica respeito. Discordar com educação não é ser intolerante.
Para finalizar, fica para pensarmos como esta luta por viver pautado pela obrigação da consciência religiosa é árdua, perigosa, mas correta. Martinho Lutero, o monge agostiniano que passou a ser o ícone do movimento da Reforma protestante, depois seguido por outros ícones como João Calvino e tantos outros, quando confrontado diante do imperador Carlos V e sua corte na cidade de Worms, Alemanha, para que renunciasse aos livros que escrevera, disse o seguinte: “Não posso e não irei renegar nada, pois não é nem seguro e nem correto agir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém”.
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