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Esta semana marcou o tradicional National Prayer Breakfast, ocorrido em Washington, com a presença do presidente Donald J. Trump. O evento é uma tradição anual, e presidentes americanos participam desde Dwight D. Eisenhauer, em 1953.
Em seu discurso, Trump anunciou diversas medidas que agradaram sobremaneira a parcela da sociedade americana (e global, como uma esperança de algo semelhante em seus países) ligada à chamada “pauta dos costumes”, bem como foi intencional com relação a temas de liberdade religiosa – inclusive o que ele mesmo diz – para “erradicar tendências anticristãs” nas agências federais. Chegou, em determinado ponto, a dizer que os Democratas “se opõem à religião, opõem-se a Deus”.
Por fim, disse que está criando uma comissão presidencial para liberdade religiosa, e anunciou que vai criar um órgão na Casa Branca a que denominou “Escritório da Fé” (Faith Office), para se encarregar de políticas públicas envolvendo o tema, e que será chefiado pela Rev. Paula White.
Entre as atribuições do Advogado-Geral, estará a de solicitar informações de pessoas ou entidades – públicas e privadas – que tenham ou demonstrem condutas “anticristãs”. Naturalmente, seus opositores já levantaram as vozes para gritar “o Estado é laico” e dizer que estas medidas vão de encontro com o espírito republicano. Mas, será?
O conceito de laicidade pode ser interpretado de diferentes maneiras, tanto em uma visão positiva (laicidade) quanto negativa (laicismo), da relação entre Poder Político e a Religião. No caso da laicidade, onde não deve haver hostilidade da sociedade e Estado para com a fé, os modelos variam entre o que chamamos de laicidade simpliciter e a laicidade colaborativa.
A laicidade simpliciter refere-se a um modelo de separação rígida entre Estado e religião. Aqui o que há é um “muro de separação”, evitando qualquer interação institucional com entidades religiosas. Esse modelo sempre foi enxergado como o americano, pelo menos até pouco tempo atrás.
Por outro lado, a laicidade colaborativa, modelo predominante no Brasil, reconhece o papel social e histórico das religiões, permitindo uma interação construtiva entre Estado e organizações religiosas. Nesse contexto, a presença da religião no espaço público não é vista como uma violação da separação entre Estado e Igreja, mas sim como uma colaboração legítima para o bem comum, respeitando a liberdade religiosa de todos os cidadãos.
Essa mudança de paradigma aproxima os Estados Unidos do modelo brasileiro, no qual a religião não é excluída da esfera pública
Nos Estados Unidos, tradicionalmente considerados um exemplo de laicidade simpliciter, tem-se observado uma mudança significativa nos últimos anos. Um marco importante foi o caso Bremerton v. Kennedy, no qual a Suprema Corte americana afastou o chamado Lemon Test como único critério para analisar casos de liberdade religiosa à luz da Primeira Emenda da Constituição.
O caso envolveu Joseph Kennedy, um treinador de futebol americano em uma escola pública em Bremerton, Washington. Após as partidas, Kennedy tinha o hábito de ajoelhar-se no meio do campo e realizar orações silenciosas, prática que, com o tempo, passou a contar com a participação de jogadores e outras pessoas. A administração escolar, preocupada com possíveis violações da Cláusula de Estabelecimento da Primeira Emenda da Constituição dos EUA, solicitou que ele interrompesse essa prática. Kennedy recusou-se e continuou a orar no campo, o que levou a escola a não renovar seu contrato. Ele então processou o distrito escolar, alegando que seus direitos às liberdades de expressão e de exercício religioso, garantidos pela Primeira Emenda, haviam sido violados.
Em 2022, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 6 votos a 3, a favor de Kennedy. O tribunal concluiu que suas orações constituíam uma expressão religiosa pessoal protegida pelas Cláusulas de Livre Exercício e de Liberdade de Expressão da Primeira Emenda.
A decisão destacou que a Constituição não exige nem permite que o governo suprima tal expressão religiosa individual. Além disso, a Corte afastou o uso exclusivo do "Lemon Test" — um critério anteriormente utilizado para avaliar possíveis violações da Cláusula de Estabelecimento — em favor de uma abordagem que considera práticas e entendimentos históricos. O Lemon Test, estabelecido no caso Lemon v. Kurtzman (1971), determinava que, para que uma política pública relacionada à religião fosse constitucional, deveria atender a três requisitos: ter um propósito secular, não promover ou inibir excessivamente a religião e evitar envolvimento excessivo do Estado com a religião.
Essa decisão sinaliza uma mudança na interpretação da separação entre igreja e estado nos Estados Unidos, aproximando-se de um modelo que permite maior interação entre religião e esfera pública, semelhante ao modelo de laicidade colaborativa adotado no Brasil.
Ao abandonar esse teste como critério exclusivo, a Suprema Corte americana abriu espaço para um entendimento mais próximo da laicidade colaborativa, reconhecendo que o Estado pode interagir com a religião de forma mais flexível, sem que isso represente necessariamente uma violação da Constituição. Essa mudança de paradigma aproxima os Estados Unidos do modelo brasileiro, no qual a religião não é excluída da esfera pública, mas sim reconhecida como um elemento legítimo da sociedade que pode contribuir para políticas públicas e valores coletivos.
Dessa forma, a criação do Escritório da Fé (Faith Office) na Casa Branca e outras iniciativas promovidas pelo governo Trump demonstram um avanço nessa direção, desafiando a concepção tradicional de laicidade nos EUA e sinalizando uma possível consolidação de um modelo mais próximo da laicidade colaborativa brasileira.
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