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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Wartburg

A fortaleza da fé: Isabel da Hungria, Martinho Lutero e o espírito da liberdade

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O Castelo de Wartburg, na cidade alemã de Eisenach. (Foto: Klaus Dieter vom Wangenheim/Pixabay)

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Dos vários tesouros que um período de descanso traz quando envolve uma viagem em família, neste tempo tive a chance de conhecer a Alemanha, terra de parte dos meus antepassados, berço da minha fé luterana e, obviamente, lugar de grandes lutas civilizatórias.

Dentre os vários cenários por onde andei, um tesouro medieval me aguardava. No alto das montanhas da Turíngia, coroando a cidade de Eisenach, ergue‑se o Castelo de Wartburg. Construído por volta de 1067, o castelo não é apenas um posto militar, mas um palco da história germânica. Ali, cultura, fé e política se entrelaçam de forma singular, fazendo-se um espelho da alma alemã. Poucos edifícios condensam tão intensamente o drama da fé, o florescimento da cultura e as dores do nascimento da liberdade política. Em Wartburg, pedras falam.

No século 12, o castelo floresceu como centro artístico e político. No célebre Sängerkrieg (torneio de menestréis), poetas como Walther von der Vogelweide e Wolfram von Eschenbach entoavam versos de honra, amor e transcendência. Era o tempo da minne – o amor cortês e espiritual – e Wartburg, seu templo. Essa dimensão cultural e espiritual lembra que a liberdade de criação e de culto caminham juntas. E aqui aconteceu o palco de duas histórias sensacionais.

Isabel da Hungria: a caridade que liberta

Isabel da Hungria chegou a Wartburg com 4 anos, prometida ao herdeiro da Turíngia. Casou-se aos 14 com Luís IV e, em meio ao luxo feudal, escolheu o caminho da radicalidade cristã: usava vestidos simples, dividia a comida com os pobres, transformou uma ala do castelo em enfermaria e lavava feridas com as próprias mãos.

Poucos edifícios condensam tão intensamente o drama da fé, o florescimento da cultura e as dores do nascimento da liberdade política quanto o castelo de Wartburg

Após a morte do marido, nas Cruzadas, Isabel renunciou à herança e passou a viver entre os doentes. Morreu aos 24 anos e foi canonizada rapidamente. Em seu quarto simples e na pequena capela de Wartburg, percebe‑se que a santidade se constrói no serviço.

Sua vida expressa a dimensão social da liberdade religiosa: o direito não se restringe ao culto, mas abrange a vivência pública da fé através da caridade e da assistência social.

Lutero: a palavra liberta e a língua também

Três séculos depois, Wartburg acolheu um hóspede improvável: Martinho Lutero. Após desafiar Roma e recusar‑se a fazer uma retratação na Dieta de Worms (1521), ele foi resgatado por aliados e escondido no castelo sob o nome de Junker Jörg.

No isolamento, traduziu o Novo Testamento do grego para o alemão. Esse ato foi teológico e político: a Palavra de Deus deixava de ser monopólio clerical e tornava‑se acessível ao povo. O quarto simples com a escrivaninha de Lutero, onde teria lançado o tinteiro contra o diabo, mostra que ali nasceu não só o alemão moderno, mas uma nova relação entre consciência individual e Escritura.

A cruz no topo da torre de Wartburg não toma partido: acolhe consciências sinceras que, cada uma a seu modo, buscam viver para Deus

A tradução de Lutero exprime uma liberdade fundamental que o direito moderno preserva: cada pessoa tem o direito de procurar a verdade religiosa “sem interferência governamental” e sem favorecimento de uma crença em detrimento de outra. Como lembra o professor Steven T. Collis, defender a liberdade religiosa evita guerras e protege as decisões pessoais mais profundas, pois sem ela as pessoas lutam pelo controle do Estado com base em suas crenças.

Um castelo para duas histórias e o modelo de laicidade colaborativa

No século 19, durante o Romantismo e o renascimento do orgulho nacional alemão, o grão‑duque Carl Alexander restaurou Wartburg. Em vez de apagar a memória de Lutero ou de Isabel, ele permitiu que as duas histórias coexistissem de forma harmoniosa.

O Salão dos Cantores foi reconstruído com murais do torneio; a Elisabethengalerie recebeu afrescos sobre a vida da santa; a Lutherstube preservou o quarto do reformador. O castelo tornou‑se monumento à identidade alemã e espaço de reconciliação espiritual. A cruz no topo da torre não toma partido: acolhe consciências sinceras que, cada uma a seu modo, buscam viver para Deus.

Esse espírito de convivência inspira o modelo brasileiro de laicidade colaborativa, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Na semana passada, Thiago lembrou que, apesar de episódios graves de intolerância, a corte brasileira tem consolidado jurisprudência robusta em matéria de liberdade religiosa.

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Suas decisões reconhecem a liberdade religiosa como direito fundamental de dupla dimensão – individual e coletiva –, protegendo inclusive seu exercício público e a dinâmica da laicidade colaborativa. O STF tem afirmado que o Estado deve ser neutro e não hostil: a Constituição invoca “a proteção de Deus” como símbolo cultural, sem violar a separação igreja‑Estado.

Desafios recentes: intolerância e legislações restritivas

A proteção constitucional, contudo, não impede desafios. E, mesmo vivendo a história na Alemanha medieval, os olhos não saem das notícias aqui no Brasil atual.

Nas últimas semanas, cresceram as denúncias de ataques a templos afrobrasileiros em Salvador. O jornal Metrópoles relatou que pelo menos três ocorrências de demolições, pichações e escavações irregulares em áreas sagradas de terreiros foram registradas em 2025. Esses episódios acontecem em meio a um aumento de registros de intolerância religiosa na Bahia, que subiram de 348 em 2022 para 640 em 2024.

O caso mais recente envolveu a demolição do terreiro Ilê Axé Oya Onira’D pelo Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) – ação que, segundo a comunidade, ocorreu sem aviso prévio e deixou objetos sagrados espalhados. Outras ocorrências incluem a pichação do muro da Casa de Oxumarê, classificada pelos responsáveis como ataque à liberdade religiosa, e escavações que ameaçam áreas sagradas de 17 terreiros, gerando investigações da Delegacia de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa.

A liberdade religiosa é fundamental não apenas para quem crê: é um verdadeiro termômetro da democracia

Já no campo da moralidade cristã, outro debate recente envolve projetos legislativos que pretendem proibir as chamadas “terapias de conversão”. Artigo do site jurídico Migalhas alerta que propostas em tramitação na Assembleia Legislativa de São Paulo (PL 1495/23) e na Assembleia Legislativa da Bahia (PL 25.862/25) “avançam perigosamente sobre direitos fundamentais” como a liberdade religiosa, a liberdade de expressão e o direito ao aconselhamento espiritual voluntário.

O texto frisa que a Constituição protege a liberdade de culto e a manifestação de pensamento (de acordo com o artigo 5.º, VI; incisos IV e IX), e que a laicidade brasileira não permite agressão a visões diferentes do mundo, da vida, e da própria sexualidade (como, inclusive, já claramente estabelecido pelo julgamento da ADO 26), e não autoriza censura a práticas religiosas consentidas. A redação genérica das propostas poderia atingir cultos, palestras e aconselhamentos voluntários, configurando censura e violando a autonomia das pessoas, o que contraria o princípio da dignidade humana.

Perspectivas internacionais

No cenário internacional, as notícias também chamaram a atenção. O First Liberty Institute divulgou nesta semana um ranking de proteção à liberdade religiosa nos Estados Unidos. A Flórida foi apontada como o estado com maior proteção em 2025, obtendo 74,6% de efetividade em 47 salvaguardas avaliadas; A Virgínia Ocidental, apesar de ter lei específica, marcou apenas 19,6%. O levantamento demonstra como políticas públicas podem reforçar ou fragilizar a livre prática de fé.

Outra discussão recorrente envolve o papel do sistema interamericano de direitos humanos. Aqui mesmo, na coluna, já criticamos a passividade da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Ele observa que, em toda a história da corte, apenas dois casos sobre liberdade religiosa foram julgados, ambos contra a liberdade – e que parte dessa omissão decorre da pouca utilização do sistema pelos países da região.

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A laicidade defendida pela corte tem sido instrumentalizada para impor nova ortodoxia ideológica e que a liberdade religiosa corre o risco de se tornar “direito de segunda classe”. Isso mostra o quanto precisamos de maior participação dos Estados e das entidades de direitos humanos – além das próprias igrejas e instituições religiosas – na defesa da liberdade religiosa no âmbito interamericano.

Conclusão: o castelo que inspira liberdade

Wartburg, com suas torres que acolhem a memória de uma princesa católica e de um reformador protestante, ensina que a convivência entre diferentes expressões de fé é possível e bela. O Brasil, com sua laicidade colaborativa, pode aprender e ensinar muito com essa harmonia: respeitar e proteger todas as consciências, sejam religiosas ou não.

A liberdade religiosa é fundamental não apenas para quem crê: é um verdadeiro termômetro da democracia. Em tempos de polarização e conflitos culturais, lembrar que Isabel e Lutero dividiram o mesmo castelo – e que o Brasil acolhe inúmeras tradições sob a mesma Constituição – é um convite à paz. A liberdade religiosa não exige uniformidade de pensamento, mas respeito às escolhas conscientes de cada alma. Pois, como nas pedras de Wartburg, as histórias de fé só florescem quando há espaço para que diferentes vozes possam ser ouvidas.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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