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O que está acontecendo com o acidente de trem em Ohio
Cloreto de vinila foi queimado de forma controlada em trem em cidade de Ohio e autoridades suspenderam ordem de evacuação, mas moradores temem efeitos a longo prazo| Foto: Reprodução/CBS

Em maio de 2021, escrevi um artigo chamado Programação Preditiva: propaganda em tempos de crise?. Nele, comentei sobre a teoria de que certas produções cinematográficas antecipam acontecimentos futuros, com o fim de “adestrar” as pessoas sobre como devem agir e reagir diante desses eventos quando chegarem. Na ocasião do primeiro texto, mostrei que a CIA possui um escritório de ligação com a indústria do entretenimento, que influencia o conteúdo de filmes e séries, para que encaminhem as narrativas cinematográficas na linha daquilo que os EUA desejam que o mundo pense e se comporte. Hoje, temos um novo acontecimento que trouxe de volta conversas sobre este controverso tema.

No último dia 3, os moradores da pacata cidade de East Palestine, em Ohio (EUA) viveram uma situação insólita quando um trem carregando material tóxico descarrilou, liberando uma fumaça altamente tóxica. O material transportado era o cloreto de vinil, muito utilizado na confecção de embalagens plásticas. O problema é que, quando queimado, ele se transforma no fogênio, substância tão mortal que era utilizada na Primeira Guerra Mundial como arma química. Por isso, a cidade precisou ser evacuada às pressas.

No meio de tantas incertezas, o que sabemos com segurança é que a mídia possui um poder inestimável para pautar os assuntos tratados pelas pessoas.

Você poderia dizer: “parece até cena de filme”. Quem pensou assim, acertou. Isso porque um filme recente não apenas contou uma história idêntica a essa, mas o longa-metragem foi filmado exatamente na mesma cidade onde aconteceria o acidente real. Alguns moradores que hoje estão fora de suas casas devido à evacuação inclusive participaram do filme como figurantes. Matematicamente, creio que a chance de uma coincidência deste porte acontecer deve ser praticamente nula, o que abriu margem para as mais insanas especulações.

O filme se chama Ruído Branco (em inglês, “White Noise”), tendo estreado no 79º Festival Internacional de Cinema de Veneza no dia 31 de agosto de 2022, e chegando à Netflix no dia 25 de novembro do ano passado. Depois de dez filmes em que escreveu e dirigiu, esta foi a primeira vez que o diretor Noah Baumbach não filmou uma história de sua autoria. A obra foi fruto da adaptação de um romance homônimo de 1985, escrito por Don DeLillo, classificado pelo crítico literário Harold Bloom como “um dos maiores romancistas americanos de seu tempo”. Sempre muito crítico ao “sistema”, DeLillo defende que a função de todo escritor é “se opor aos sistemas. É importante escrever contra o poder, as empresas, o estado e todo o sistema de consumo e de entretenimentos debilitantes [...] eu acho que os escritores, por natureza, devem se opor às coisas, opor-se a qualquer poder que tente nos impor”. Por aí você consegue identificar a maneira como o escritor pensa, o que irá nos ajudar um pouco aqui em nossa reflexão.

Não foi a primeira vez que a obra de DeLillo antecipa ocorrências futuras, o que aumenta ainda mais a estranheza do acidente recente em Ohio.

Mas o que poucos sabem é que, ao longo de sua abundante produção – iniciada em 1962 com um conto que traz o sugestivo título Take the ‘A’ Train (“Pegue o trem ‘A’, em tradução livre do inglês) – o escritor ganhou uma fama, um tanto misteriosa, de possuir um “poder preditivo”, ou seja, uma capacidade de prever eventos futuros. Conclusão: não foi a primeira vez que sua obra antecipando ocorrências futuras, o que aumenta ainda mais a estranheza do acidente recente em Ohio e favorece as teorias mais mirabolantes e especulativas.

Mas não são apenas obscuros blogs conspiratórios que apontam o caráter preditivo da obra de DeLillo. Numa matéria da revista New Yorker de novembro de 2011, o autor é apontado como um dos primeiros a reforçar a ideia de que, no futuro, o mundo seria atormentado pelo terrorismo, tendo dito que “o clima do futuro seria determinado não por escritores, mas por terroristas”. Não apenas isso, ele teria, segundo a matéria, até mesmo previsto a queda das Torres Gêmeas, ocorrida em setembro de 2001, uma vez que sempre havia considerado o World Trade Center não como um par de edifícios, mas um par de alvos. Para defender tal tese, Martin Amis, autor da matéria da New Yorker, citou o romance Players, de 1977, em que DeLillo criou uma personagem, Pammy Wynant, que trabalhava no W.T.C. para uma empresa de “gerenciamento de luto”, e que diz o seguinte numa passagem: “As torres não pareciam permanentes. Eles permaneceram conceitos, não menos transitórios em todo o seu volume do que uma distorção rotineira da luz”. Muito sinistro tudo isso.

Certas produções cinematográficas antecipam acontecimentos futuros, com o fim de “adestrar” as pessoas sobre como devem agir e reagir diante desses eventos quando chegarem.

Já uma matéria de 2016 publicada no site da famosa livraria norte-americana Barnes and Noble traz quatro ocasiões em que Don DeLillo teria “previsto o futuro”. Curiosamente, o primeiro livro citado é exatamente o Ruído Branco, de 1985. Nele, o autor teria previsto o surgimento da Internet e da cultura online, em passagens como: “De que adianta o conhecimento se ele apenas flutua no ar? Vai de computador para computador. Ele muda e cresce a cada segundo do dia. Mas ninguém realmente sabe de nada”. Mas não apenas isso. Nesta obra ele também teria previsto uma maior conscientização do perigo dos produtos “tóxicos” e de desastres dessa natureza, numa época em que o tema ainda estava longe de se transformar numa preocupação comum. Inclusive, neste livro, ele teria criado uma expressão que acabou ganhando ampla utilização na mídia dos EUA, o chamado “Evento Tóxico Aerotransportado”.

No livro Mao II (1991), o autor teria previsto a coletivização da vida cotidiana. Ele teria imaginado, com décadas de antecedência, as ideias de crowdsourcing (ou seja, obter informações ou partir de uma grande coletividade, por meio da internet, redes sociais e aplicativos de smartphone); crowdfunding (o “financiamento coletivo”); as próprias mídias sociais; e os protestos maciços. Além disso, também teria visualizado antecipadamente as multidões de sem-teto vivendo em parques, como se tornou comum hoje na Califórnia e na cidade de Portland.

No livro Cosmopolis (2003), DeLillo teria previsto movimento Occupy Wall Street (2011) e o colapso financeiro de 2008. No livro Americana (1971), o autor teria previsto os reality shows. Apesar de os primeiros protótipos terem sido desenvolvidos no final da década de 40, o formato somente seria consolidado em 1999 com a criação, na Holanda, do Big Brother, que deu origem posteriormente ao Big Brother Brasil, em 2002.

Tudo muito estranho, não? No meio de tantas incertezas, o que sabemos com segurança é que a mídia possui um poder inestimável para pautar os assuntos tratados pelas pessoas e de configurar o senso comum, por meio de modelos de comportamento que são impressos nas sociedades, através de celebridades e grupos que lançam modas e criam padrões comportamentais e de consumo.

Encerro este artigo deixando duas dicas para quem deseja se aprofundar no assunto. Primeiro: pesquise sobre Chase Brandon, o agente da CIA que era responsável por passar para Hollywood aquilo que o pentágono queria que fosse mostrado nos filmes. Segundo: estude sobre Agenda Setting (ou Hipótese do Agendamento), teoria segundo a qual os consumidores consideram mais importantes as informações que são apresentadas pela mídia. Deus abençoe vocês.

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