Opinião

A paixão e a eficiência

04/11/2022 14:40
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No vale tudo do futebol, na próxima Copa do Mundo mais uma vez veremos a atroz diferença entre o futebol da América Latina e o futebol europeu. É a paixão versus a eficiência.
Especialmente para quem ainda não se recuperou da vergonhosa goleada de 7x1 que o Brasil levou da Alemanha, é de se perguntar: onde você estava no dia 4 de julho de 1954, quando a Alemanha Ocidental ganhou da Hungria por 3 a 2 e ganhou a Copa do Mundo em Berna?
De Berna a Belo Horizonte, foram 60 anos suando a camisa para os alemães humilharem os brasileiros no Mineirão. A Alemanha é das favoritas entre as nações europeias, mas nem sempre foi assim. Eles já levaram muitas bolas nas costas. Nas primeiras décadas do pós-guerra, os jogadores de diferentes países europeus só ficavam conhecidos depois de bailar com os dribles cinematográficos do Garrincha. Fato extraordinário aconteceu em 1957, quando o atacante galês John Charles fez história ao deixar o Leeds United para se juntar à Juventus de Turim pela assombrosa quantia de 67 mil libras. Até o final da década de 60, era muito raro um clube contratar um craque de outra nacionalidade.
O extraordinário Ferenc Puskas, depois de fugir de Budapeste para jogar no Real Madrid, era praticamente desconhecido fora do seu país – de tal forma que em 1953, quando Puskas comandou a Hungria na primeira derrota da seleção inglesa em casa, os jogadores ingleses diziam antes de começar o jogo: “Olha só aquele gorducho... vamos dar uma goleada!”.
Uma geração mais tarde, viraram estrelas de futebol. Não necessariamente os jogadores mais talentosos, mas desempenhavam um papel até então reservado aos artistas de cinema e aos membros da realeza. De tão popular, havia quem sugerisse que o futebol substituía não só a guerra, mas também a política.
É esse fenômeno europeu que hoje faz a grande diferença no futebol mundial. Não estamos vendo mais em campo socialistas versus capitalistas; proletários versus patrões; imperialistas versus revolucionários. Frente a frente, estamos vendo a paixão versus a eficiência. E por enquanto o placar é de 7 x 1 para os mais eficientes.
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Exemplo da paixão latina pelo futebol aconteceu em Curitiba, na Copa de 1954 no Brasil, quando os músicos da orquestra “Suspiros de Espanha” desafiaram os boêmios do Clube Botafogo das Mercês para um tira-teima no Campo do Poti - campinho de várzea que deu origem à Praça 29 de Março.
O tira-teima teria sido provocado durante a regulamentar canja de galinha de fim de noite. Um polaco do Bigorrilho subiu na mesa e puxou um coro parecido com aquele do Rio de Janeiro, quando a Seleção Brasileira goleou a Espanha por 6 a 1. Diante de mais de 150 mil pessoas no Maracanã, logo depois do sexto gol, toda a torcida cantou em uma só voz a marcha “Touradas em Madri”, de Braguinha e Alberto Ribeiro. No dia 25 de junho de 1950, nove mil pessoas viram a Espanha ganhar dos Estados Unidos por 3 a 1. Com o resultado, os músicos da orquestra Suspiros de Espanha estavam tão gabolas que a provocação não podia passar sem resposta:
– Entonces que vengan los chifrudos de Curitiba!
A notícia de que os castelhanos da orquestra tinham desafiado os “chifrudos de Curitiba” para um tira-teima no Campo do Poti alvoroçou las chicas do Centro Espanhol do Paraná. Também alvoroçadas, as dançarinas argentinas mandaram fazer suas bandeirolas vermelhas e amarelas. Na torcida organizada, as mocinhas das Mercês formaram um bloco de torcedoras fantasiadas de melindrosas
O resultado daquela pelada no Campo do Poti, numa tarde de segunda-feira – dia de folga de músicos e dançarinas – se perdeu na poeira do tempo. Dizem que resultou num calamitoso empate de 7x7, quem há de saber ao certo? O que se sabe é que boa parte da orquestra “Suspiros de Espanha” sucumbiu perante a paixão das brasileiras. Em seus últimos suspiros, as cordas e os sopros de Madri não contavam com a assistência de tantas massagistas casadoiras no final da partida.