Opinião

As aspas da democracia

24/06/2022 14:02
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Mentira e hipocrisia são desvirtudes vizinhas. O hipócrita é aquele que finge o que não tem: virtudes e sentimentos. Hipocrisia deriva do latim “hypocrisis” e do grego “hupokrisis”, ambas as palavras significando representar ou fingir. A mentira tem como consequência a hipocrisia e a atitude clássica do hipócrita é denunciar alguém por cometer algum pecado, enquanto comete justamente a mesma heresia. Trocando em miúdos, é o roto denunciando o esfarrapado.
O francês François de la Rochefoucauld, que atribuía ao amor-próprio um papel preponderante na motivação das ações humanas, tem uma oração de cabeceira dos devotos da santa do pau oco: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.
“Vote pela mudança!” - “Vou trabalhar pela saúde, segurança e educação e dinheiro na mão” - “Você me conhece e sabe do que sou capaz” - “Quero continuar meu bom trabalho” - “Posso fazer muito mais por você” - “Agradeço a oportunidade de entrar na sua casa e falar para o seu coração” - “Conto com seu apoio para caminharmos juntos rumo à vitória” - “Vote por quem faz e fará muito mais por você” - “Não faço promessas eleitoreiras. Prometo apenas o meu trabalho e dedicação” - “Preciso de seu voto de confiança” - “Você, mulher, vamos nos unir nessa batalha!” - “Estou comprometido com as pessoas mais humildes e desprotegidas” – “Tamo junto!”.
São dois tipos de discursos políticos: um sem aspas, outro com aspas. Tem a sincera proposta de um candidato, que dispensa aspas; e tem o falso discurso de campanha de um hipócrita: “Sou diferente dos outros candidatos”, com aspas, que vem com o carimbo da hipocrisia.
Aspas não são apenas sinais que abrem e fecham a citação. Tem outros significados: no linguajar gaúcho, “bater aspas” quer dizer bater a orelha. Como expressão popular “fincar as aspas” é o mesmo que cair de cabeça para baixo. E “fincar as aspas no inferno” é o mesmo que desejar a morte à pessoa indesejável. Ou invejada.
Em tempos risonhos e francos, as pessoas tinham inveja. Pura e simplesmente inveja. Com o advento do Facebook, agora surgiu não se sabe de onde a “inveja branca”. Com aspas.
Aspas para Aldous Huxley: “Posso simpatizar com a dor de uma pessoa, mas não com os seus prazeres. Há algo curiosamente monótono na felicidade dos outros”.
Todo marido traído tem aspas. Quem bebe socialmente não usa aspas para reconhecer que é alcoólatra. O padre que nos perdoe, “até que a morte os separe”, só com aspas. Sem aspas, o futebol perde a sua graça: “Vamos continuar trabalhando forte”, diz o desolado lateral; o beque fez “o que o professor mandou”, o goleiro acha que o “futebol é assim mesmo e vamos levantar a cabeça”; o esforçado atacante “não estava numa fase boa”; e o técnico “continua prestigiado”.
Fim de tarde, ele liga para casa: “Vou passar no bar da esquina para tomar um chopinho e logo estou em casa”. Com aspas, ela acredita: “Que bom, logo hoje que fiz aquela sopinha de ervilhas!”. Na boate de luz vermelha, o galã de meia-idade exige: “Serve dois uísques do bom!”. O garçom levanta uma das sobrancelhas e pergunta: “Do bom com aspas ou sem aspas?”.
Aspas para George Bernard Shaw: “O castigo do mentiroso não é que deixam de acreditar nele, mas que ele passa a não acreditar em ninguém”.
Para quem chegou ao fim de tantas aspas, vamos escolher nossos candidatos com muita calma, sem culpa e sem aspas. O segundo turno não leva aspas. Se já decidiu com muita antecedência em quem vai votar, vote com a sua consciência. Se vai deixar para escolher seus candidatos na boca da urna, “boa sorte!”. Com aspas.