Opinião

Quem não viu Sevilha não viu maravilha

07/05/2022 20:29
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No final do ano passado, ao embarcar para uma curta temporada na Cidade do México, levei como bagagem de mão uma preciosa obra de Erico Verissimo. “México: história duma viagem”, publicado em 1957, é um misto de guia de viagem e de ensaio sobre a história, a cultura e o caráter mexicanos. O pai de Luis Fernando Verissimo costurou o enredo do livro a partir de um périplo de férias dentro do território mexicano e de seus encontros pessoais e literários com grandes nomes das artes, da filosofia e da historiografia.
Como já não imprimem mais guias de viagem como antigamente, hoje tudo se encontra na internet, passei trinta dias em Sevilha tendo como guia os poemas de João Cabral de Melo Neto. Com “Sevilha Andando” (Nova Fronteira, edição de 1989) viajei pelo que há de mais eterno e original na cidade: na história, na arquitetura, na cultura, na paisagem dos laranjais urbanos, e, com seus enxutos versos, na sensualidade feminina simbolizada particularmente pelo andar da sevilhana.
Sevilha, a cidade fêmea onde outra espécie humana / Soube criar-se em chama;/ Sevilha que tem o clima que é mister / à mulher para ser mais mulher.
Apaixonado pela Espanha, onde morou como diplomata nos anos 1940 e 50, João Cabral tinha uma proposta poética não suficientemente valorizada nem mesmo na Andaluzia: a de sevilhizar o mundo. A fonética do português intensifica esse significado, já que “sevilhizar” é muito mais civilizar. Assim, no poema “Sevilhizar o mundo”, os versos compõem um hino em defesa da vida, numa cidade que toda a humanidade deveria copiar.
Para João Cabral, Sevilha era a cidade mais simpática que conheceu em toda sua vida, como escreveu em carta ao amigo também diplomata Lauro Escorel, em maio de 1956: “Pequena, à l’échelle humaine (a escala humana), toda gente se conhece, anda a pé, todas as mulheres dançam sevilhana e todos os homens entendem de corrida de touros. Sinto-me no meu elemento”.
Como se fosse um guia turístico, pois a cidade lhe parecia tão íntima que era como se andasse pelas ruas de Recife, João Cabral de Melo Neto nos leva a desvendar os segredos de Sevilha:
Qual o segredo de Sevilha? / Saber existir nos extremos / como levando dentro uma brasa / que se reacende a qualquer tempo. 
Com o hábito de caminhar sem rumo, flanando, indo e vindo por suas ruas estreitas, para desvendar Sevilha só mesmo andando, aconselhava o poeta:
Só com andar pode trazer / a atmosfera Sevilha, cítrea / o formigueiro em festa / que faz o vivo de Sevilha. 
Formigueiro em festa seria a Semana Santa em Sevilha e em toda Andaluzia, por supuesto. Com as ruas tomadas por milhares de turistas, especialmente em Sevilha cruzar a cidade se torna quase impossível.
É a Semana Santa em Sevilha. / As procissões são todo dia. / Como os clubes têm suas cores / seus bairros: são as Confrarias. 
Vêm duas filas de penitentes / (rosários levando rosários), / cada uma com o andor de seu Cristo, / já cinquentão, crucificado.
O sevilhano o olha da porta / do bar, e pensa: “Pobre homem”, / em que enrascada se meteu”, / e volta ao bar onde consome.
Segundo o biógrafo Ivan Marques, o poeta se dizia avesso ao catolicismo: “A única coisa capaz de lhe dar um certo sentimento religioso era a Semana Santa em Sevilha. Um detalhe o deixou impressionado: a imagem do Cristo, que todas as confrarias exibiam em tamanho natural, era a de um homem maduro, de quarenta anos, mas a da Virgem era de uma moça, que parecia sua filha. Na opinião do poeta, o sevilhano, muito mulherengo, tinha um interesse quase sensual na Virgem.”
Sofrendo de uma intermitente dor de cabeça que o fazia tomar diariamente uma quantidade assustadora de aspirinas, João Cabral se transfigurava ouvindo flamenco no bairro boêmio de Triana, enquanto anotava na “servilleta” sobre a mesa a frase de um amigo sevilhano: “De Sevilha ninguém jamais disse tudo. Mas espero dizê-lo um dia”.
Quem não viu Sevilha não viu maravilha, é o que podemos dizer depois de tudo o que já nos disse o poeta.