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Sim, o Projeto de Lei da Dosimetria aprovado nesta madrugada é uma vitória do STF, e eu vou mostrar isso. Antes, diga-se que ele foi o “avanço possível” para uma direita que não tem a presidência da República nem a das Casas Legislativas e foi subjugada pelo STF ao longo dos últimos anos, em uma perseguição implacável. Diga-se também que a redução das penas entre um e dois terços para os réus do 8 de janeiro é muito importante. A decisão da direita de apoiar o projeto foi acertada; afinal, era isso ou nada. O projeto reduzirá o sofrimento de milhares de pessoas esmagadas pelo arbítrio supremo.
Dito isso, o maior vitorioso da noite foi o Supremo Tribunal Federal, que conseguiu bloquear a votação do projeto de anistia e de qualquer projeto de dosimetria mais substancial, que beneficiasse de fato Bolsonaro. Há no projeto uma regra que beneficia Bolsonaro, mas pouco, com uma redução da sua pena de 27 anos e 3 meses de prisão para um patamar que pode variar entre 22 anos e 1 mês até 24 anos e 10 meses. Os cálculos mais otimistas veiculados na imprensa estão errados. Ou seja, para Bolsonaro não muda muita coisa, ele seguirá preso em regime fechado.
Enquanto a direita pressionava por um projeto de anistia, a cúpula do Congresso, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, articulou com o STF a alternativa que foi aprovada. A imprensa noticiou, sem qualquer indignação, que Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes participaram de uma reunião com Paulinho da Força, escolhido por Motta para relatar a anistia. Em coletiva de imprensa, ontem, Paulinho chegou a afirmar que “tudo o que eu fizer, o STF vai bater o martelo”. Todos sabemos de onde vem o poder de interferência supremo: as investigações contra Motta e Alcolumbre que tramitam na Corte.
É inacreditável que os ministros do STF estejam envolvidos diretamente na atividade legislativa, mas, mais inacreditável ainda, é que Moraes tenha participado de discussões sobre um projeto para influenciar as penas dos réus que ele próprio está julgando. Isso parece normal? Parece condizente com a imparcialidade e inércia judicial? Alguém imagina o que a imprensa diria se Sergio Moro, no auge da Lava Jato, tivesse se reunido com lideranças do Congresso para discutir a redução das penas daqueles que ele condenava? Mais ainda: o que diriam se Moro tivesse, nas suas mãos, o destino de investigações envolvendo os presidentes das Casas e, no mesmo contexto, tivesse o poder de aprovar previamente o que seria votado no Congresso?
A perplexidade cresce quando lembramos que o STF antecipou que qualquer anistia relacionada ao 8 de janeiro seria inconstitucional, mesmo sem existir qualquer texto final sobre isso. Nenhum juiz pode opinar sobre um caso que lhe será submetido e depois julgar esse mesmo caso. Além disso, diante do histórico brasileiro de anistias em contextos de ruptura institucional, tal afirmação soa, no mínimo, risível. A anistia de 1979 não foi a única: tivemos precedentes em 1961, 1956, 1945, 1930, entre outros. É evidente que uma interpretação histórica da Constituição poderia sustentar a tese de que nenhum dispositivo expresso ou implícito de 1988 veda uma anistia desse tipo.
O Supremo que vimos atropelar o Congresso no projeto de anistia é o mesmo que, recentemente, suspendeu regras da lei do impeachment, alegando que feriam a separação de poderes. É uma hipocrisia suprema.
Superado esse ponto, o texto articulado nesse grande acordo nacional — “com o Supremo, com tudo” —, vamos ser francos, é muito fraco, até mesmo para os padrões esperados pela base do governo Lula. Circulava nos bastidores que Paulinho da Força pretendia alterar as penas dos crimes pelos quais os envolvidos no 8 de janeiro foram condenados, especialmente os de tentativa de golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Mas o projeto aprovado não tocou nesses dispositivos. Ele basicamente impede que as penas desses dois crimes sejam somadas, apenas isso. Além disso, como vimos, cria uma previsão que permite reduzir de um terço a dois terços a pena de crimes cometidos em contexto de multidão, desde que o agente não tenha financiado os atos nem exercido papel de liderança.
Ou seja: nada de redução geral das penas, nada de anistia, nada de devolução da elegibilidade de Bolsonaro, nada de soltura imediata dos envolvidos no 8 de janeiro...
E mais: tudo indica que a oposição tinha votos para aprovar uma anistia ampla. A urgência do projeto foi aprovada por mais de 300 votos, e o PL da dosimetria passou com 291 votos. Se uma emenda em plenário tivesse sido apresentada, a oposição poderia ter transformado o texto em uma verdadeira anistia. Essa emenda só não foi apresentada porque Paulinho da Força, amparado por Motta, foi irredutível: ou se votava o PL sem alterações, ou não haveria votação alguma. A chantagem tem uma razão de ser clara: agir de acordo com o que o Supremo quer. O Congresso foi sequestrado pelos ministros.
Para uma oposição desgastada, que passou o ano tentando emplacar uma anistia e estava exaurida, sem alternativas, era melhor pegar do que largar. Paulinho ainda tentou dourar a pílula, afirmando que Bolsonaro ficaria preso apenas mais dois anos e alguns meses, mas nem se deu ao trabalho de explicar sua conta, porque ela é, de fato, inexplicável. Se o projeto for aprovado pelo Senado e sancionado pelo presidente, a redução da pena será de um montante a ser definido pela boa vontade dos ministros, entre um patamar mínimo de 2 anos e 5 meses até um máximo de 5 anos e 2 meses. Na melhor hipótese, que é improvável num cenário de má vontade do Supremo com Bolsonaro, a pena será reduzida em menos de 20%.
O fato é que o STF interferiu diretamente no resultado da votação e saiu vitorioso, derrotando a oposição. Como isso pode ser considerado normal em um sistema democrático liberal que prevê a separação dos poderes continua sendo um mistério. Talvez nenhum jurista sério consiga explicar, à luz da Constituição e da lei, como esses ministros ainda não sofreram um impeachment. Mas uma coisa parece evidente: 2026 será decisivo. Será o momento de produzir uma avalanche eleitoral no Congresso que limite, de uma vez por todas, o poder dos ministros do STF de abusarem e fazerem o que quiserem, sem qualquer controle ou punição.
É preciso dar uma resposta nas urnas.




