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Livro da semana – “Isso é agua”

Reprodução/Internet
David Foster Wallace.

Uma vez li uma descrição sobre o trabalho de Alfred Hitchcock que dizia o seguinte: ele tinha uma compulsão por fazer as coisas acontecerem: encher a tela que antes não tinha nada, encher uma página em branco com uma história, um roteiro e, claro, encher a sala de cinema para assistir seus filmes. Esse era o objetivo: colocar as coisas em movimento.

Não sei se faz sentido, mas para mim isso (a descrição é de um fã de Hitchcock, François Truffaut) é uma possível diferença entre arte e entretenimento. O cara que faz entretenimento quer exatamente isso: mais um filme, mais um livro, preencher o tempo, divertir. E pensa em como conseguir chegar lá: mais cenas de ação? É preciso pôr uma risada aqui? O que vai divertir melhor?

Nada de errado, claro. Quem já viu Hitchcock nos seus melhores momentos, como “Um Corpo que Cai”, sabe como isso funciona bem. Mas arte é um pouco diferente. Você escreve, filma ou compõe porque quer dizer algo. Parte-se de algo queb o sujeito quer dizer, não de uma compulsão causada pela página vazia. Se a página fica em branco e você não tem nada a dizer, qual é o problema?

Hmmm. Introdução longa demais para dizer apenas o seguinte: grandes romancistas normalmente são aqueles que melhor descrevem o mundo. E, por isso, que mais pensam sobre o mundo à sua volta. Por isso, solte um grande romancista para falar e usualmente o cara vai ter coisas interessantes para dizer.

Foi o que aconteceu em 2005, quando David Foster Wallace, tido hoje, três anos depois de sua morte, como um dos maiores de sua geração, foi chamado para falar em uma cerimônia de formatura de alunos da Universidade Kenyon. Discursos de formatura, como regra, são perfeitamente esquecíveis. O dele foi tão bom que… virou livro.

Wallace começa com uma historinha. Reproduzo:

Lá estão dois peixinhos jovens nadando por aí quando por acaso encontram um peixe mais velho nadando na outra direção, que os cumprimenta com a cabeça e diz “Dia, meninos. Como é que está a água?” e os dois peixinhos nadam mais um pouco e então por fim um deles olha para o outro e diz “Mas o que diabos é água?”

Ele, logo em seguida (e mais de uma vez) diz que não está tentando dar aula de moral nem falar sobre virtudes. Talvez seja uma mentirinha branca. No fundo ele está, sim, dizendo que a autoconsciência é algo que os alunos deveriam buscar, e a consciência do mundo a seu redor. No fundo, está falando de virtudes, também, como a justiça e a tolerância. Mas vamos ao texto.

Wallace, no fundo, diz que, apesar de soar como um clichê, vai repetir a ideia de que uma educação universitária serve para fazer a gente aprender a pensar. Aprender sobre o que pensar, diz ele. E começa a dar exemplos do que quer dizer com isso.
Por exemplo, no fim de um dia de trabalho. Você vai ao supermercado e tem toda aquela aporrinhação, trânsito pesado, filas, gente feia dirigindo caminhonetes imensas (quando é aplaudido aqui ele para e diz que esse é um exemplo de como não pensar…)

E o que ele quer que você se lembre, no fundo, é que aquelas pessoas têm um momento e talvez uma vida tão tediosa quanto a sua. Que o sujeito na caminhonete a diesel pode ser um cara que sofreu um acidente terrível – e o psicólogo dele disse que ele só poderia dirigir um carro como aquele, mais seguro. Que o cara que te corta no trânsito pode estar a caminho do hospital, levando o filho. Você é que está no caminho dele, afinal.

Ele diz que não está falando de virtudes porque isso seria uma escolha de tentar entender o mundo, como Wallace fala, fora de nossa “configuração de fábrica”.

Tudo na minha experiência imediata sustenta minha profunda crença de que sou o centro absoluto do universo; a pessoa mais real, mais vívida e mais importante que existe no mundo. Nós raramente pensamos nesse tipo de autocentramento natural, básico, porque ele é tão repulsivo, socialmente. Mas ele é basicamente o mesmo para todos nós. É a nossa configuração de fábrica, definida nas nossas placas-mães quando nascemos. Pense um pouco: não há uma só experiência que você tenha tido e em que você não seja o centro absoluto.

Wallace disfarça porque não quis assustar os meninos, acho. Mas é disso que se trata falar de virtudes. Ter escolhas e, de maneira autoconsciente, escolher o caminho melhor. Fazer a coisa certa, como diria o velhinho no filme do Spike Lee.

“Isso é água”, a transcrição do discurso em forma de livro, é curtinho, como tinha de ser. Mas traz mais coisas importantes para você pensar do que se imaginaria. Ainda mais pensando que não era para ser nada mais do que um discurso de formatura.
Wallace não quis só encher o tempo daquele pessoal. Ele realmente tinha o que dizer.

Serviço: Como livro, “This is Water” não foi publicado em português. Mas a Revista Piauí tem em seu site uma versão do texto. Vale ver. A tradução que uso nos trechos acima, no entanto, é de meu irmão Caetano.

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