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Os mil cliques e as mil páginas
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Dentre as tantas dívidas de leitura que eu tenho para pagar a mim mesmo, está a floresta densa das mil páginas de Os irmãos Karamázov, do velho Dostoiévski. Estou embrenhado no coração da selva, perto da metade. Sei que a dívida dos livros por ler não se paga à vista e, no extremo oposto, não vai se pagar nunca. Quanto mais a gente lê mais aparecem títulos à nossa frente.
Mas, a partir das mil páginas da minha edição (999, para ser mais preciso), me pego pensando na rapidez das mãos vorazes e seus cliques alucinados. Vem-me à cabeça a comparação entre estas atividades: a leitura de um romance e a navegação na internet, duas práticas que devem – em tese – ser trabalhadas pela escola. Quanto tempo vou levar para ler as mil páginas do clássico russo e em quanto tempo dou mil cliques com o mouse, não vou saber responder com exatidão, mas poderia dizer que os cliques estão para a corrida de cem metros rasos assim como a leitura está para a maratona.
Em uma delas, a rapidez nos dá logo uma noção geral de como andam as coisas no mundo, e chegamos logo ao objetivo: um portal de notícias é prova disso, uma vez que, em pouco tempo, ficamos sabendo das tragédias, dos conflitos políticos, do futebol, da fofoca. É a rapidez do jornal on-line lido no café da manhã, feito de manchetes e textos que vão direto ao assunto (o clássico lead do jornalismo: quem, o quê, quando…). Acompanhar os 140 caracteres do Twitter também nos dá a dimensão de quanto, com rápidas clicadas, ficamos integrados ao que supostamente nos interessa. E pronto: estamos munidos com tiros suficientes para entabular uma conversa de alguns minutos, emitir juízos que tornam a conversa mais longa conforme vão sofrendo o efeito de nossas digressões.
Do outro lado, as mil páginas, a corrida lenta, o desconforto dos primeiros minutos, a conquista do ritmo, a resignação por ainda estar nos primeiros quilômetros quando parece que já se correu tanto. Mas, ajustada a respiração, adequadas as passadas, você entra no espírito da corrida, observa as pulsações, ouve a respiração, o trabalho da musculatura. Você tem tempo para perceber o seu corpo em diálogo com o trajeto, os tempos e as distâncias. Algo que uma corrida de cem metros não pode proporcionar.
Tanto a prova que define o atleta mais veloz do mundo quanto a que elege o mais resistente são estilos nobres do atletismo e ninguém diria que uma é mais importante que outra. São diferentes.
A experiência dos mil cliques, no entanto, é corriqueira para muita gente, enquanto a leitura de um romance extenso, não. E eu, que tenho defendido tanto a necessidade de que a escola leve em consideração as novas tecnologias, mas que nunca, nunca, nunca abra mão das mídias antigas (o livro, sobretudo) – sempre usando o argumento de que as pessoas precisam encarar a experiência de ler a melhor literatura existente e encarar 200, 300 páginas –, agora me vejo diante de uma experiência ainda mais intensa: as mil páginas de Os irmãos Karamázov, que são quase uma ultramaratona.
Se os mil cliques aumentam a superfície do terreno que você consegue percorrer (não à toa superficial deriva de superfície), as mil páginas vão trazer um poder de prospecção que eu não consigo vislumbrar nas novas mídias.
Portanto, não estou aqui para defender a leitura de livros em detrimento da leitura na rede. Mas a leitura na rede todo mundo está fazendo, ao passo que a leitura de livros, não. Minha defesa é pelo equilíbrio da balança. É fácil copiar excertos da timeline de amigos nas redes sociais e dizer que o mundo não está interessado em aprofundar a discussão de seus problemas. Mas é difícil, em meio a tantas atribulações cotidianas, ir atrás da imersão que só a grande literatura oferece. Estou sentindo isso na pele. Mas também retirando daí um prazer fruto do esforço, bem diferente do prazer momentâneo, que se esgota em si mesmo.
E quem lê sabe do que eu estou falando. Não é arrogância. Apenas uma constatação que, creio, vale a pena partilhar.


>> Cezar Tridapalli é coordenador de Midiaeducação do Colégio Medianeira, escola filiada ao Sinepe/PR (Sindicato das Escolas Particulares), e escritor, autor do romance Pequena
biografia de desejos (7Letras).

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