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Em Mentiram para nós sobre o Brasil, Adriano Gianturco — colunista da Gazeta do Povo, professor e coordenador do IBMEC — reúne dados de organismos internacionais para confrontar algumas das narrativas mais repetidas no debate público brasileiro. A proposta é trocar opiniões por evidências empíricas e mostrar como muitos diagnósticos sobre o país não resistem à análise comparada. Nesta entrevista, Gianturco fala sobre os principais achados do livro, os mitos mais difíceis de desmontar, o funcionamento do Estado brasileiro e o papel das elites políticas na distorção do debate nacional.
Entrelinhas: No seu novo livro, o que o leitor vai encontrar e por que essas narrativas sobre o Brasil se distanciam tanto dos dados reais?
Gianturco: No livro, eu faço uma pesquisa sobre várias áreas diferentes e coloco todas as evidências empíricas: dados, números, fatos objetivos. Não se trata de opiniões. Trago exemplos curiosos: o Brasil é um dos únicos três países do mundo com idade penal mínima de 18 anos; é um dos 19 países sem prisão perpétua. Ao mesmo tempo, é o 18º do mundo em doações e voluntariado, mas vai muito mal em mortalidade nas estradas.
Também mostro dados de economia e política. O Brasil é a terceira economia mais protecionista do mundo, não é um país capitalista — em todos os rankings internacionais está entre os países com menos liberdade econômica. Tem o Congresso mais caro do mundo quando se olha o custo por parlamentar, além de uma Constituição extremamente longa, muito emendada e que promete muitos direitos.
Entrelinhas: Entre os mitos abordados, qual foi o mais difícil de desconstruir?
Gianturco: Os mais difíceis foram justamente aqueles que eu não coloquei no livro, porque não encontrei dados suficientemente confiáveis. Um exemplo é a ideia de que o Brasil tem feriados demais. É muito difícil fazer um ranking internacional porque há feriados federais, estaduais e municipais, e isso muda de país para país e ao longo do tempo.
Outro caso complicado é a letalidade policial. Existem dados sobre mortes causadas pela polícia, mas praticamente não há dados consolidados sobre a mortalidade dos próprios policiais, porque é difícil classificar se estavam na ativa, na reserva, em serviço ou de folga.
Entrelinhas: Por que a ideia de que o Brasil é um país capitalista ganhou tanta força, apesar de os rankings mostrarem o contrário?
Gianturco: Existem três rankings internacionais de liberdade econômica e, em todos, o Brasil está entre as últimas posições. Além disso, o país é um dos que mais têm empresas estatais no mundo, perdendo apenas para a China quando se somam estatais federais, estaduais e municipais.
O Brasil também tem o maior banco de desenvolvimento do mundo: o BNDES é maior que o Banco Mundial e equivale a cerca de 8% da economia brasileira.
Esse mito existe porque há uma parcela da mídia e da elite política que não quer mais mercado e prefere mais intervencionismo. Então, dizem que o Brasil já é capitalista e já tem livre mercado. Não é verdade. O debate público acaba acontecendo sobre coisas que não existem quando você olha os dados.
Entrelinhas: Recentemente, saiu o dado de que há cerca de 53 mil servidores ganhando acima do teto. Como isso se encaixa no seu diagnóstico?
Gianturco: Esse dado saiu depois do lançamento do livro, mas se encaixa perfeitamente. O Brasil não tem muitos funcionários públicos em proporção internacional, mas o gasto por funcionário é muito alto.
Quando você compara o salário médio do funcionalismo com o da população em geral, o descompasso é um dos maiores do mundo. O problema não é o número de servidores, é o custo do Estado para o contribuinte.
Entrelinhas: Muito se diz que o Brasil tem municípios demais. Isso é verdade?
Gianturco: Não. O Brasil tem 5.570 municípios. A França tem cerca de 35 mil, a Alemanha 11 mil, a Espanha 8 mil. O problema aqui não é a quantidade, é que cerca de 30% dos municípios são deficitários e precisam ser bancados por estados ou pela União.
Entrelinhas: Você critica comparações frequentes entre o Brasil e países como Noruega ou Suécia. Quais seriam boas comparações?
Gianturco: Isso está cientificamente errado. É preciso comparar unidades comparáveis, por renda ou por região. Quando você compara o Brasil com países como Turquia, China, Malásia ou Indonésia, muitos problemas brasileiros assumem outra dimensão.
Além disso, é fundamental olhar dados em proporção, não em números absolutos. Países grandes sempre parecem piores em dados absolutos. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, mas em proporção cai para posições bem mais baixas.
Entrelinhas: O Brasil também se destaca negativamente no foro privilegiado. O que os dados mostram?
Gianturco: O Brasil tem entre 45 mil e 55 mil pessoas com foro privilegiado, um recorde internacional. O segundo colocado está muito atrás, com poucas centenas.
É verdade que algum tipo de imunidade política existe em quase todos os países, para evitar perseguições judiciais, mas aqui isso passou do ponto.
Entrelinhas: O problema brasileiro é, no fundo, um problema de elites?
Gianturco: Sim. A escola elitista mostra que, em qualquer sistema, quem manda é sempre uma minoria organizada. Mesmo na democracia, as castas políticas conseguem travar o sistema para se manter no poder.
O caso da Lava Jato é um exemplo: houve avanço e mobilização popular, mas no longo prazo a elite política, que tem a caneta na mão, conseguiu reverter o movimento.
Entrelinhas: O que a extensão e o número de emendas da Constituição revelam sobre o Estado brasileiro?
Gianturco: O Brasil tem a terceira Constituição mais longa do mundo, uma das que mais prometem direitos e, considerando o tempo de vigência, é a mais emendada do planeta. O cidadão comum vive isso no dia a dia quando escuta falar o tempo todo em PEC. Isso mostra um Estado instável, que muda as regras o tempo inteiro.
Entrelinhas: Se o debate público brasileiro fosse baseado mais em dados do que em narrativas, o que mudaria primeiro?
Gianturco: Primeiro, perceberíamos onde o país realmente está. Hoje, o debate é baseado em grandes mentiras, como a ideia de punitivismo. Não existe punitivismo no Brasil.
Os dados mostram que a justiça penal brasileira está entre as piores do mundo em imparcialidade e em controle do uso do cargo público para fins privados.
O passo inicial seria olhar os rankings internacionais, fazer comparações corretas e, a partir disso, construir um debate mais maduro e consciente sobre o Brasil.





