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Apoiadores do clérigo xiita iraquiano Muqtada al-Sadr, chefe do movimento sadrista, sobre os blocos de concreto enquanto tentam invadir a ‘Zona Verde’ no centro de Bagdá, Iraque, 30 de julho de 2022.
Apoiadores do clérigo xiita iraquiano Muqtada al-Sadr, chefe do movimento sadrista, sobre os blocos de concreto enquanto tentam invadir a ‘Zona Verde’ no centro de Bagdá, Iraque, 30 de julho de 2022.| Foto: EFE/EPA/AHMED JALIL

Uma guerra civil no Iraque, infelizmente, é questão de “quando”, não de “se”. O país vive uma contínua crise política na última década e, quando parece que a piora seria impossível, a situação se deteriora ainda mais e torna-se mais grave. Em apenas um dia, o último 29 de agosto, centenas de pessoas ficaram feridas na capital Bagdá, mais de uma dezena ficou ferida e as embaixadas dos EUA e do Irã foram atacadas por grupos armados. Caso a situação continue, a “mera sobrevivência do Estado do Iraque estará em risco”.

As aspas se devem ao fato disso ser uma citação direta da nota da Missão das Nações Unidas de Assistência no Iraque. O texto foi escrito após mais uma onda de protestos em Bagdá em que manifestantes apoiadores do clérigo xiita Muqtada al-Sadr invadiram o Palácio Republicano, sede do governo do primeiro-ministro, cargo atualmente ocupado por Mustafa al-Kadhimi. Em um mês, essa foi a quarta grande invasão por manifestantes da Zona Internacional de Bagdá, conhecida também como “Zona Verde”.

Ali estão os principais edifícios de governo e embaixadas estrangeiras. Foram publicados relatos, inclusive, de representações ocidentais que foram evacuadas emergencialmente. Nas semanas recentes, os Sadristas invadiram o parlamento duas vezes e cercaram a sede do Judiciário. O que motiva esses protestos? As eleições de outubro de 2021. Melhor dizendo, as consequências das eleições. O movimento Sadrista foi o partido mais votado, com cerca de 10% do voto nacional, elegendo 73 cadeiras, de 329, ao parlamento.

Desde então, entretanto, nenhum governo viável foi formado no país, que segue sob um governo interino por quase um ano. Sete partidos elegeram mais de dez parlamentares, mais de vinte outros partidos elegeram ao menos um e existem 43 parlamentares independentes. Tornou-se tarefa impossível formar um bloco de ao menos 165 representantes de um governo de maioria. E isso é explicado por vários motivos. O primeiro e óbvio é a fragmentação que já citamos.

Fragmentação

Também é fator as divisões sectárias, entre xiitas e sunitas. Outro aspecto é o apoio internacional de cada grupo. Por exemplo, dentre os grupos xiitas, existem diferentes graus de proximidade com o Irã. Divergências ideológicas também se fazem presentes. Os curdos, por exemplo, são divididos entre dois blocos partidários, um de esquerda e outro de direita. O que lembra que existe também a divisão nacional interna ao Iraque. Também existe a divisão entre religiosos e os partidos seculares.

Além dessa fragmentação política e da pulverização do parlamento, existem outros elementos na atual crise que refletem discursos presentes na sociedade iraquiana. Um deles, muito presente entre os Sadristas, é o da corrupção, de que os outros atores políticos são todos corruptos, representando famílias tradicionais regionais ou então líderes vendidos para países estrangeiros. al-Sadr é xiita, estudou no Irã e possui boa relação com o país, mas defende a retirada de todas as “influências estrangeiras” do Iraque.

Na atual crise, al-Sadr alega que foi o vencedor das eleições mas que os outros partidos o boicotam, por estarem sob jugo estrangeiro ou por ele não ser corrupto. Também afirmava que qualquer governo sem a participação de seu partido seria ilegítimo, mesmo que com maioria. “Afirmava” pois, em junho, seu partido anunciou a renúncia coletiva de todos os parlamentares, afirmando que não negociariam com corruptos e com as “velhas lideranças” que estão “destruindo o país”.

O estopim dos protestos no dia 29 foi o anúncio da “aposentadoria política” por al-Sadr. Se é um anúncio sincero ou um blefe, ainda está incerto, mas agitou ainda mais o Iraque. Existem outros dois elementos que o leitor precisa ter em mente para compreender o que se passa no país árabe dono de uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Primeiro, praticamente todo grupo político possui uma milícia armada. Isso faz com que crises escalem muito rápido.

Episódios de violência

Não é a primeira vez que isso acontece. Em novembro de 2021, o Hezbollah iraquiano e seus aliados se revoltaram pedindo uma recontagem eleitoral. O Movimento de Outubro, em 2019, envolveu uma miríade de milícias, com um saldo de quase mil mortes, quase tornando-se uma guerra civil generalizada. O premiê al-Kadhimi já foi alvo de duas tentativas de assassinato. Em setembro de 2018, manifestantes em Bassorá, ao sul, cidade de maioria sunita, invadiram o consulado iraniano na cidade.

Os críticos afirmam que al-Sadr deseja “jogar gasolina na fogueira” e que seu discurso é intransigente, impedindo acordos nacionais com outros grupos, na colcha de retalhos iraquiana que ilustramos. A família al-Sadr é uma das mais influentes dentre os xiitas iraquianos. Ele foi opositor tanto de Saddam Hussein quanto das forças dos EUA após a invasão de 2003. Seu objetivo seria uma república islâmica, sem a presença de influências estrangeiras, incluindo o Irã.

Um dos poucos líderes populares do Iraque, as bandeiras de al-Sadr são muito difíceis de serem classificadas em uma perspectiva de esquerda e direita, um conceito ocidental. Um “populismo nacionalista” é talvez o que chege mais perto, de maneira superficial. E ele também possui suas milícias armadas, os Sarayat al-Salam, “Batalhões da Paz”. E o fato das milícias armadas serem tão prolíficas no Iraque tem ligação direta com o grande risco de uma guerra civil que ameaça a “sobrevivência do Estado”.

Desde a invasão pelos EUA, em 2003, o Iraque passou por diferentes momentos de crise. Talvez a mais grave delas foi quando parte considerável de seu território estava sob controle do Daesh, o autointitulado Estado Islâmico. O Estado estava falido e as forças armadas nacionais passando por um processo de refundação. Para combater o grupo extremista e genocida foram formadas as Forças de Mobilização Popular, um exército paralelo formado pelas milícias locais e partidárias, oficializando suas existências.

Vácuo de poder

Em teoria trata-se de uma guarda nacional subordinada ao exército. Na prática, é uma coletânea de grupos armados cada um com uma lealdade diferente, a maioria deles xiita. Temos então um país com diversos atores armados, em duas décadas de instabilidade, incluindo uma invasão estrangeira e um grupo terrorista que dominou consideráveis fatias de território, alvo de diferentes interesses de seus vizinhos e das potências, rachado entre diferentes grupos e em um vácuo de poder desde as eleições.

Exemplo desse vácuo de poder é o número de vezes que a soberania iraquiana foi violada por outros países, como Irã, Turquia e EUA, nos últimos anos. Quem vai protestar? Quem vai fazer alguma coisa, se sequer existe um governo que consiga representar todo o Iraque e os iraquianos, com legitimidade popular? Ano após ano esse vácuo de poder cresce e o tecido social e político do Iraque é mais esgarçado, ao ponto da ruptura, que certamente afetaria toda a região.

Vácuos de poder muitas vezes não duram muito. Uma “liderança forte”, como um general, pode querer “restaurar a ordem”. Ou uma revolução popular religiosa deseje “preservar valores”. Um país estrangeiro pode interferir, transformando uma guerra civil iraquiana em uma guerra por procuração entre sauditas e iranianos, por exemplo. Não é à toa que a missão da ONU pedir que os líderes iraquianos “se abstenham de atos que possam levar a uma cadeia imparável de eventos.”

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