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Uma imagem de satélite disponibilizada pela Maxar Technologies mostra fumaça sobre o Aeroporto Internacional de Cartum, na capital do Sudão, 16 de abril de 2023. Tiroteios pesados e explosões foram relatados em Cartum, entre o exército e um grupo paramilitar
Uma imagem de satélite disponibilizada pela Maxar Technologies mostra fumaça sobre o Aeroporto Internacional de Cartum, na capital do Sudão, 16 de abril de 2023. Tiroteios pesados e explosões foram relatados em Cartum, entre o exército e um grupo paramilitar| Foto: EFE/EPA/MAXAR TECHNOLOGIES

Mais de 185 pessoas morreram no Sudão nas últimas 72 horas. Os combates opõem, de um lado, o exército nacional sudanês, comandado pela junta militar que governa o país, e as Forças de Apoio Rápido do outro, um grupo paramilitar composto por uma miscelânea de milícias unidas, muitas delas envolvidas em crimes e atrocidades na região de Darfur. É possível também o envolvimento de outro grupo armado, que inserem os atuais choques no Sudão no contexto da guerra na Ucrânia.

Até 2019, o Sudão era governador pelo ditador Omar al-Bashir, indiciado pelas atrocidades de seu governo no Tribunal Penal Internacional. Além da corrupção e da violência política, dois episódios de repressão e crimes de guerra foram marcantes em sua ditadura. A repressão aos cristãos no sul do país, levando à secessão e criação do Sudão do Sul, e a violência em Darfur, região sudoeste do país, motivada por questões étnicas contra as minorias não-árabes e pelo controle de terras produtivas.

Como braço repressor, a ditadura al-Bashir usava as milícias chamadas coletivamente de Janjaweed, uma série de bandos armados formados em diferentes vilas. Em 2013, o então ditador amalgamou todas as milícias sob o nome Forças de Apoio Rápido, RSF na sigla em inglês. A ideia de criar essa força paramilitar sob bênção do Estado era contrabalançar o poder político do exército e fornecer um arcabouço legal para proteger os chefes das milícias contra eventuais problemas legais.

No comando foi colocado Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemeti, um chefe de clã que se tornou líder de milícia e autor confesso de crimes de guerra no atual Sudão do Sul. Inicialmente, as RSF foram utilizadas por al-Bashir contra os protestos populares de 2019. Também participaram do massacre de civis na capital Cartum, em junho de 2019. O faro político de Hemeti, entretanto, fez as RSF mudarem de lado e apoiarem a derrubada de al-Bashir.

O otimismo da revolução popular não durou muito, como os leitores aqui do nosso espaço de política internacional acompanharam no período. A revolução foi derrubada por um golpe militar, o décimo oitavo desde 1956. A Junta Militar promete uma transição para a democracia, progressivamente adiada, e a população sofre tanto com a frustração política quanto com problemas econômicos. Corrupção endêmica, pilhagem dos recursos naturais, pouco investimento público e inflação galopante, agravada com a guerra na Ucrânia.

Hemeti, como líder do maior grupo paramilitar do país, tornou-se vice-presidente do Conselho Militar de Transição, o nome oficial da junta militar, cujo presidente é o general Abdel Fattah al-Burhan, o mandatário do país reconhecido internacionalmente. Hemeti também é um dos homens mais ricos do país, riqueza construída a partir do controle armado de regiões ricas em minérios, especialmente ouro.

O Sudão é o terceiro maior produtor de ouro da África e é estimado que cerca de 80% do metal extraído no país seja contrabandeado para o exterior, sem passar pelos mecanismos oficiais. Chefes de milícias controlam as minas e usam o ouro tanto para enriquecimento próprio quanto para o financiamento do próprio grupo armado. Nos últimos anos, o preço internacional do ouro subiu constantemente. A demanda pelo metal e o fato de ser uma riqueza física, que pode ser negociada sem a necessidade de transações digitais, tornam o ouro bastante atraente para o contorno de sanções econômicas.

Entra a relação com a guerra na Ucrânia. Nos últimos anos, o grupo Wagner, de propriedade de Yevgeny Prigozhin, amigo e aliado de Putin, expandiu suas atividades na África. O grupo é uma empresa de mercenários que serve de braço armado extraoficial da Rússia, em um resumo extremamente conciso. Hoje, o grupo está presente na Líbia, na República Centro-Africana, no Mali e em Burkina Faso. E também no Sudão, ao menos desde 2018, ainda durante a ditadura al-Bashir. Em todos os locais, o grupo Wagner apoia aliados da Rússia em situações de conflitos internos.

Empresas russas começaram a atuar na extração de ouro no Sudão, supostamente empresas de fachada para o grupo Wagner. Após a queda de al-Bashir, a influência do grupo diminuiu, com al-Burhan entrando em choque com os representantes russos. O general sofre, inclusive, pressão dos EUA para diminuir a presença russa no Sudão. Mesmo assim, nos últimos anos, diversos aviões russos de carga saíram do Sudão. Na ida, a carga de armamentos e munições. Na volta, ouro e outros metais estratégicos.

Se o grupo Wagner e o exército sudanês não estão necessariamente no mesmo passo, a extração ilegal de ouro aproximou os russos da RSF. Hemeti esteve ao menos duas vezes em Moscou desde o começo de 2022, e o ouro tornou-se ainda mais estratégico para financiar as atividades dos mercenários do grupo Wagner na Ucrânia. Ou seja, os choques no Sudão, além de um conflito interno entre duas forcas locais, também reflete a necessidade do grupo Wagner de garantir seus interesses no Sudão.

O governo russo pediu por calma e fim das hostilidades. Para o Kremlin, é mais interessante um acordo do que um conflito, em mais um episódio de dissonância entre Moscou e o Wagner. Uma guerra civil deflagrada pode acabar com as RSF e, consequentemente, enfraquecer a Rússia no Sudão. Governos da região, como o Quênia, já ofereceram para mediar a situação. Além dos interesses econômicos, é necessário achar um equilíbrio entre o exército e as RSF. A História mostra que nenhum Estado sobrevive com diferentes grupos armados dentro dele.

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