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O médico alemão Alfred Hoche, coautor de “Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida”, de 1920.
O médico alemão Alfred Hoche, coautor de “Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida”, de 1920.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“Chegará uma nova era em que, do ponto de vista de uma moralidade elevada, já não se dará atenção às demandas de um conceito inflado de humanidade e de um superestimado valor da vida em si.” (Alfred Hoche, 1920)

No dia 3 de outubro de 1933, um editorial de capa do New York Times celebrava uma proposta legislativa estrangeira, que permitiria aos médicos e profissionais de saúde acabar com o sofrimento dos pacientes incuráveis. Tratava-se da lei alemã de legalização da eutanásia, proposta pelos nazistas recém-chegados ao poder. Mais ou menos como hoje acontece no terreno da bioética entre apologistas contemporâneos da eutanásia, do suicídio assistido e do aborto, a proposta nazista mencionava uma série de diretrizes protetivas, incluindo a necessidade de que a solicitação fosse voluntária e expressa de maneira clara, e, no caso em que o procedimento fosse pedido por parentes de pacientes incapazes, que os motivos para a morte “não ferissem a moral”.

Embora a proposta original tenha sido retirada devido à contundente oposição das igrejas alemãs, meses depois Hitler instituiu a esterilização compulsória e, em seguida, o programa generalizado de eutanásia, o famigerado T-4. Baseado na ideologia eugenista e no darwinismo social, os nazistas criaram tribunais especiais “para a saúde hereditária”, cuja função era julgar os “hereditariamente doentes”, categoria que incluía deficientes mentais e físicos, alcóolatras, epiléticos e indivíduos tidos por “racialmente” degenerados.

Mas, porquanto tenha sido levada ao seu paroxismo na Alemanha nazista, essa concepção especial da medicina como instrumento político não foi uma criação ex nihilo de Hitler e seus acólitos. É bom lembrar que nos EUA, por exemplo, já havia ao menos três décadas que a eugenia virara uma espécie de religião oficial do establishment político e intelectual (donde o entusiasmo inicial do NYT pelo programa nazista de eutanásia). E, na Alemanha, a negação médica do juramento de Hipócrates – que criou o caldo cultural do programa genocida nazista – havia sido introduzida nos anos 1920, em plena República de Weimar, por intelectuais, médicos e juristas.

A abordagem filosófica de Karl Binding e Alfred Hoche é bastante similar à de bioeticistas contemporâneos, notadamente os defensores do aborto e da eutanásia. Ela era tão obcecada quanto a de hoje com a eliminação do sofrimento “desnecessário”

Precisamente em 1920, aliás, foi publicado o documento que serviria de fundamentação médico-jurídica para toda a empreitada nazista. Trata-se do livro Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida (Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Leben), cujos autores eram dois dos mais respeitados acadêmicos em suas respectivas especialidades: Karl Binding, um renomado professor de Direito, e Alfred Hoche, médico e reconhecido humanista.

Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida – constituído por dois longos ensaios, cada qual de um dos autores – foi um assalto devastador contra a tradição hipocrática e o princípio da sacralidade e da igualdade de toda vida humana. Há na obra a afirmação inequívoca de que certas vidas humanas têm maior valor moral que outras, essas últimas descritas como “indignas de serem vividas”, categoria que, assim como para defensores contemporâneos da morte piedosa medicamente assistida, incluía os doentes terminais, os assim chamados “idiotas” (com algum tipo de deficiência mental ou síndrome genética), os malformados e os inviáveis. Essas pessoas, argumentavam os autores, deveriam poder ser mortas (de maneira voluntária ou autorizada por familiares, obviamente).

Mais do que uma simples defesa da eutanásia, a relevância do livro para o contexto nazista residia no fato de que os autores profissionalizaram e medicalizaram a ideia do assassinato “do bem”, defendido sob argumentos compassivos, e concebido como terapêutico, tanto do ponto de vista do paciente individual quanto da sociedade como um todo. Reside aí o verdadeiro pulo do gato, e o caráter revolucionário da nova concepção anti-hipocrática de medicina.

Na Alemanha dos anos 1920-30, a medicina deixou de significar, em primeiro lugar, um compromisso com a saúde do organismo individual do paciente. Embora muitas das justificativas continuassem a ser apresentadas no vocabulário da ética médica tradicional, os médicos – sobretudo os nazificados – passaram a esposar uma nova ética, voltada acima de tudo à saúde do Estado (Gezuntheit). Os médicos passaram a ter uma dupla lealdade, sendo a mais importante prestada ao país, e apenas secundariamente aos seus pacientes enquanto indivíduos. O organismo a ser preservado agora passava a ser fundamentalmente o do povo (Volk) alemão, donde a necessidade da eliminação de suas partes “doentes”.

Assim, o livro Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida serviu como uma prescrição para o expurgo médico dos elementos mais fracos e vulneráveis dentre a população alemã, receita levada a uma precisa e sistemática execução por parte dos médicos nazistas entre os anos de 1939 e 1945. Antes de se tornar um roteiro para o genocídio, a obra tornou-se sensação entre a intelligentsia alemã, compondo com o darwinismo social, a eugenia e o antissemitismo um cosmovisão rapidamente aceita e normatizada por grande parte da sociedade alemã da época. Já por volta de 1925, por exemplo, uma pesquisa de opinião realizada com pais de crianças deficientes registrou que mais de 70% deles concordariam com a morte indolor de seus próprios filhos. Portanto, quando os nazistas chegaram ao poder em 1933, já era relativamente bem aceita na opinião pública a ideia de vidas “indignas de serem vividas”.

O perturbador nessa história é constatar que a abordagem filosófica de Binding e Hoche – os quais, vale lembrar, eram à época exemplos de “bons alemães”, estudiosos respeitados e de pendor humanista, e não as monstruosas personas nazistas que lhes seriam associadas ex post facto – é bastante similar à visão defendida por bioeticistas contemporâneos, notadamente os defensores do aborto e da eutanásia. Ela era utilitária como a de hoje, e tão obcecada quanto a de hoje com a eliminação do sofrimento “desnecessário”. E, assim como a de Binding e Hoche, a bioética atual também descarta a tradução hipocrática, para a qual o valor da vida é intrínseco e absoluto, em favor de uma ética da qualidade de vida.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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