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O dramaturgo George Bernard Shaw, em foto de 1936.
O dramaturgo George Bernard Shaw, em foto de 1936.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

As primeiras décadas do século 20 assistiram à emergência do darwinismo social e da eugenia, ideologias gêmeas, amplamente aceitas pelo beautiful people da época, tal como hoje, por exemplo, são aceitos o mito do aquecimento global antropogênico ou a ideologia de gênero. Quem quer que, a exemplo de William Jennings Bryan, personagem do último artigo, ousasse alertar sobre os seus efeitos nocivos era imediatamente tachado de obscurantista, ignorante e reacionário. As opiniões então tidas por progressistas e sexy pelas classes falantes euroamericanas eram as de homens como Mencken, um racista e entusiasta da eugenia, aplaudido nos círculos elegantes por escrever coisas como esta:

“Admito prontamente que, mediante a reprodução cuidadosa, a supervisão do ambiente e a educação, talvez seja possível, ao longo de muitas gerações, aprimorar consideravelmente a linhagem do negro americano, por exemplo. Mas devo insistir que isso seria um risível dispêndio de energia, pois há uma linhagem branca superior à disposição, e é inconcebível que a linhagem negra, não obstante o quão cuidadosamente cultivada, possa algum dia lhe fazer frente. O negro educado de hoje é um fracasso, não por enfrentar dificuldades insuperáveis na vida, mas por ser negro. Ele é, em suma, um homem inferior por nascimento, e permanecerá inerte e ineficiente até que cinquenta gerações suas tenham vivido na civilização. E, ainda assim, a raça branca superior estará cinquenta gerações à frente.”

Do outro lado do Atlântico, um dos mais influentes intelectuais “progressistas” também militava pela eugenia. Era George Bernard Shaw, um dos pais fundadores do socialismo fabiano. Ao contrário do professor George W. Hunter, autor do livro A Civic Biology, abordado no artigo anterior, Shaw não esboçava qualquer resquício de pudor ao sugerir a eliminação dos que considerava “parasitas” sociais. Se o primeiro ainda fizera a ressalva de que “a humanidade não permitiria certas práticas”, o social-democrata britânico jamais hesitou em manifestar a mais cruenta lógica sacrificial.

Para George Bernard Shaw, a eugenia era parte integral do projeto socialista. Ele defendia a abolição do casamento tradicional e a sua substituição por uma poligamia eugenicamente favorável, supervisionada pelo Estado

Graças aos seus posicionamentos durante a Primeira Guerra Mundial, Shaw adquiriu fama de pacifista, arauto das liberdades individuais contra os abusos do poder estatal. Nada poderia ser mais falso. Para notá-lo, basta ir às fontes e consultar-lhe os escritos. No prefácio da peça On the Rocks, por exemplo, Shaw alega que o princípio da sacralidade da vida humana, supostamente desacreditado pela teoria darwinista, era um absurdo do ponto de vista do socialismo legítimo. Nesse texto escrito em 1933 – significativamente, o mesmo ano da ascensão nacional-socialista ao poder na Alemanha –, o autor faz um apelo ostensivo ao extermínio “científico” de vidas humanas. Nas palavras de Shaw:

“Nesta peça, um chefe de polícia faz referência à necessidade política de matar pessoas: uma necessidade tão perturbadora para o político, e tão aterrorizante para o cidadão comum, que ninguém, além de mim (até onde sei), ousou examiná-la diretamente em seus próprios termos, embora todo governo se veja obrigado a pô-la em prática numa escala que varia da execução de um único homicida ao extermínio de milhões de inocentes. Embora concordando com esses procedimentos, e mesmo aclamando-os e celebrando-os, não ousamos dizer a nós mesmos o que estamos fazendo, ou por quê; e então chamamo-nos de justiça, ou pena capital, ou dever para com o rei e a nação, ou algum outro disfarce verbal conveniente para o que, instintivamente, reputamos como um trabalho sujo. Essas evasões infantis são revoltantes. Devemos remover o disfarce e descobrir o que realmente está por trás disso tudo. O extermínio deve ser feito em bases científicas, se se pretende conduzi-lo humana, apologética e plenamente.”

Noutra ocasião, Shaw tornou a fazer comentários sobre o que chamava de parasitas sociais, membros da burguesia europeia. Um registro filmado de seu discurso encontra-se no documentário The Soviet Story (2008), do diretor letão Edvīns Šnore, onde ouvimos:

“Todos devem conhecer no mínimo um punhado de pessoas sem utilidade neste mundo, que trazem mais problemas do que benefícios. Convém agrupá-las e dizer: ‘Meu senhor (ou minha senhora), você é capaz de justificar sua existência? Se não for capaz, se não estiver se esforçando, se não produz tanto quanto consome (…) logo, certamente, não podemos usar a vasta organização de nossa sociedade para mantê-lo vivo, porque a sua vida não nos beneficia, e não deve ser de grande valia nem mesmo para você’.”

Em fevereiro de 1934, numa entrevista ao jornal The Listener, Shaw fez o seguinte apelo humanitário: “Eu rogo aos químicos que descubram um gás humano – mortal, decerto, mas humano, não cruel”. O humanista acreditava que essa tecnologia mortífera poderia vir a ser útil em caso de guerra. E que, mesmo em tempos de paz, a sociedade lhe daria bom uso. Como se sabe, o apelo seria atendido: dali a alguns anos, os nazistas começariam a utilizar o Zyklon B nos campos de concentração.

Para Shaw, a eugenia era parte integral do projeto socialista. “O único socialismo possível e fundamental é a socialização da procriação seletiva do homem” – escreveu em Man and Superman, livro no qual defendia a abolição do casamento tradicional e a sua substituição por uma poligamia eugenicamente favorável, dirigida por um “Departamento Estatal de Evolução”, sob os auspícios de uma nova “religião eugênica”.

Com isso em mente, o socialista fabiano chegava a propor o desenvolvimento de uma “fazenda de criação humana”, com o objetivo de “eliminar os caipiras cujo voto enfraquece a commonwealth”. O Estado deveria ser firme na política referente aos elementos criminosos e geneticamente indesejáveis da sociedade. “Com muitos pedidos de desculpas e expressões de simpatia, assim como alguma generosidade na satisfação de seus últimos desejos” – sugeriu com sarcasmo no prefácio a Major Barbara –, “deveríamos colocá-los nas câmaras letais e livrarmo-nos deles”.

Desde a sua origem, a eugenia foi concebida como Ersatzreligion, uma religião alternativa que deveria substituir a religião tradicional europeia, isto é, o cristianismo

Ressalte-se que, ao falar em “religião eugênica”, Bernard Shaw não estava sendo alegórico. Desde a sua origem, a eugenia foi concebida como Ersatzreligion, uma religião alternativa que deveria substituir a religião tradicional europeia, isto é, o cristianismo. Assim ela foi concebida por Francis Galton, seu idealizador, que em seus Ensaios sobre Eugenia, de 1909, afirmou com todas as letras a necessidade de introduzi-la “como uma nova religião”.

Galton, primo de Darwin, havia cunhado o termo em 1883, no livro Inquiries into Human Faculty. Reproduzia-se nesse volume um ensaio de 1872 intitulado “Pesquisa estatística sobre a eficácia da prece”, na qual o autor concluía (de modo análogo aos neoateus contemporâneos) que as preces religiosas não eram atendidas, e que, objetivamente, em nada influenciavam a saúde das pessoas, não passando de uma superstição. Mantendo-se cético quanto ao conteúdo da mensagem religiosa, Galton acreditava, todavia, na função social da religião. Nesse sentido um herdeiro intelectual de Maquiavel, Hobbes e Rousseau, julgava que a ciência da eugenia poderia servir de nova fé secular, ou religião civil, a redimir e purificar o homem do século 20. Em suas palavras, o destino da eugenia era tornar-se “a doutrina religiosa ortodoxa do futuro”, um “dogma religioso para a humanidade”.

Nos Ensaios, Galton destacava a importância do proselitismo nessa matéria, chegando a falar em “jihad ou guerra santa” contra “os costumes e preconceitos” que pudessem “debilitar as qualidades físicas e morais da nossa raça”. Recorrendo ao tópos da virilidade – que já havíamos visto no elogio moderno aos sacrifícios pagãos –, ele exaltava a potência da nova religião: “Em suma, a eugenia é um credo viril, prenhe de esperança e apelo aos mais nobres sentimentos da nossa natureza”.

Em 1904, o profeta da eugenia proferiu uma célebre palestra na Sociological Society, na qual estiveram presentes proeminentes intelectuais da Europa, dos mais variados campos do conhecimento. A influência de sua pregação foi ampla e profunda. F.C.S. Schiller, por exemplo, passou a advogar o que chamou de “eugenia positiva”, declarando ser uma vontade de Deus que nos esforçássemos para dar prosseguimento à evolução. O prestigiado médico Robert Reid Rentoul afirmou ser um dever cristão agir como representantes de Deus na boa criação humana. O casal de cientistas William e Catherine Whetham adaptou a linguagem do Novo Testamento à defesa da eugenia: “Não somos apenas os protetores dos nossos irmãos, mas também os guardiões das características físicas, mentais e morais de seus mais remotos descendentes”. E Julien Huxley também anunciou a palavra: “Quando forem apreendidas as implicações da biologia evolutiva, a eugenia fatalmente será parte da religião do futuro” (citados por Donald J. Childs em Modernism and Eugenics: Woolf, Eliot, Yeats, and the Culture of Degeneration).

Na América, as coisas iam no mesmo sentido. Segundo Albert E. Wiggan, presidente da Sociedade Americana de Eugenia, o mandamento supremo da ciência deveria ser: “Faça pelos nascidos e os não nascidos o que você gostaria que os nascidos e os não nascidos fizessem por você”. Em seu Novo Decálogo da Ciência, Wiggan dizia que um código moral exigia não apenas fé, mas conhecimento evolucionista. E também que a ciência evolutiva não apenas propunha novos mandamentos, mas também uma técnica para a aplicação dos antigos. De modo análogo, Irving Fisher, antecessor de Wiggan na presidência da instituição, pretendera fazer da eugenia “o grande pilar da igreja”. Em seu livro Eugenics as a Religion, um dos principais líderes do movimento eugenista norte-americano, Charles Davenport, formulou uma espécie de “credo dos apóstolos” da eugenia, em que se lê: “Creio ser o mandatário do germoplasma que carrego” (citado por Christine Rosen em Preaching Eugenics: Religious Leaders and the American Eugenics Movement).

No próximo artigo, falaremos das interconexões entre darwinismo e eugenia, aprofundando também o tema das experiências subjetivas responsáveis pela sacralização da eugenia por parte de tantos intelectuais e cientistas da época. Esconde-se aí, sob o véu de uma concepção de ciência exclusivamente naturalista (e materialista), toda uma vetusta e bastarda metafísica, cujas premissas jamais são examinadas. Revela-se aí, uma vez que começamos a ampliar o foco, aquilo que, numa obra excelente, o biofísico Cornelius G. Hunter batizou de “o ponto cego da ciência”. Seguiremos daí na semana que vem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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