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“Não quero que tenhais sociedade com os demônios” (I Coríntios, 10: 20).
Toda época fabrica os seus ídolos. E, como ensina a tradição cristã, toda idolatria é uma forma de cegueira espiritual. No Brasil contemporâneo, surgiu uma estranha forma de idolatria política, à qual aderiu uma multidão de cegos. Alexandre de Moraes foi erguido à condição de figura sacralizada pelo antibolsonarismo: juiz-salvador, guardião último da democracia, intérprete infalível do bem e do mal públicos. Sua imagem passou a ocupar o lugar que, noutras épocas, era reservado à lei, à Constituição ou mesmo à prudência. Mas a história e a teologia ensinam: nenhum ídolo resiste ao tempo. Todos acabam revelando aquilo de que são feitos: barro – e isso na melhor das hipóteses.
A idolatria, recorda o Catecismo da Igreja Católica, começa “no momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de Deus”. Atenção à formulação: mais que apenas adorar falsos deuses explicitamente, trata-se de deslocar para uma criatura – um homem, uma instituição, um cargo – a confiança absoluta que só pode ser depositada no que é transcendente. O ídolo moderno não exige incenso, mas silêncio, obediência e suspensão do juízo moral.
É exatamente esse mecanismo que o consórcio político, financeiro e midiático ergueu em torno da figura lombrosiana de Alexandre de Moraes. Um ministro do Supremo, cercado de prerrogativas, passou a ser tratado como se estivesse acima da crítica, do erro e da própria lei. Até poucas semanas atrás, toda suspeita que o envolvesse era imediatamente reclassificada como “ataque à democracia”, e toda pergunta legítima virava “ameaça institucional”. O homem real desapareceu sob o ídolo da religião antibolsonarista. Uma religião, como bem descreveu Gustavo Maultasch, fundada na ideia de que “se Bolsonaro existe, tudo é permitido”.
O escândalo envolvendo Alexandre de Moraes e o Banco Master funciona, nesse sentido, como uma epifania negativa. Não apenas porque sugere conflitos éticos graves entre poder público e interesses privados, mas porque expõe a vulgaridade moral daquele que foi alçado à condição de árbitro supremo da virtude republicana. Eis aí o papelão ao qual se prestaram jornalistas, empresários, políticos, intelectuais e artistas – um papelão do qual alguns estão querendo desesperadamente escapar.
O Brasil vive hoje essa inversão trágica: o juiz fala como soberano, enquanto o preso político fala como representante
Comentando o primeiro mandamento –“Não terás outros deuses diante de mim” –, São Tomás de Aquino ensina que os antigos o transgrediam de muitos modos. Alguns prestavam culto direto aos demônios; outros recorriam a adivinhos e sortilégios; outros ainda firmavam pactos tácitos com forças que prometiam poder, proteção ou conhecimento em troca de submissão. Santo Agostinho advertia que esses pactos nunca são neutros: quem abdica da verdade em nome da segurança já iniciou sua queda.
Mutatis mutandis, o antibolsonarismo contemporâneo firmou seu pacto. Se não com demônios arcaicos, decerto com a ideia sedutora de que a “democracia” – curiosamente entendida como um regime que exclui a representatividade popular – pode ser salva por um homem forte, desde que esse homem esteja do “lado certo”. Nesse contrato faustiano, a toga substituiu o altar; a autoridade judicial, o discernimento moral; e o estado de exceção permanente, o estado de direito.
Jair Bolsonaro enviou uma carta do cárcere. Na condição de preso político, ele enviou uma carta de Natal. Escrita, pois, nessa data central do calendário cristão – o nascimento daquele que veio ao mundo sem poder terreno, sem exércitos e sem cargos –, a carta fala de sacrifício, responsabilidade e continuidade. Bolsonaro não se apresenta como redentor. Não reivindica infalibilidade. Reconhece o custo pessoal de sua trajetória e fala como quem sabe que o poder é transitório e o dever, permanente.
“Entrego o que há de mais importante na vida de um pai”, escreve ele, ao indicar o filho Flávio Bolsonaro para a disputa política, sabendo que, no caso da direita, como já ilustraram os casos dos atentados contra o próprio Jair Bolsonaro, Donald Trump, Miguel Uribe, Fernando Villavicencio, Shinzo Abe e Charlie Kirk, o ingresso na disputa equivale ao risco de morte. A frase é teologicamente mais carregada do que supõem seus detratores, sobretudo por ter sido formulada por um homem que, no atual estado de saúde e sob as condições a que está submetido, já não contempla a morte como uma realidade distante e impessoal. Nota-se que a linguagem aqui é de oferta, não meramente de ambição política. O pai que oferece o filho em sacrifício não se coloca acima da história. Assim como Abraão, ele clama pela providência. Apesar do epíteto “mito”, Jair é a antítese do ídolo, que tudo exige e nada entrega.
O contraste não poderia ser mais agudo. De um lado, o homem privado da liberdade ainda fala em Deus, pátria, família e liberdade – categorias que remetem a algo maior que o próprio indivíduo. Do outro, o homem investido de poder absoluto age como se a ordem moral emanasse de sua própria vontade. Um reconhece limites; o outro os redefine conforme a conveniência.
Na tradição cristã, a idolatria é sempre acompanhada da hybris – a desmedida. O ídolo não aceita freios, não admite julgamento, não tolera concorrência. Exige devoção total e pune a dissidência. Não por acaso, todo regime idolátrico precisa silenciar, censurar e intimidar. A verdade é perigosa para quem se crê infalível.
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Alexandre de Moraes tornou-se o ídolo de pés de barro do antibolsonarismo porque encarnou essa promessa: a promessa de que a política poderia ser purificada pela força; de que a democracia sobreviveria sem povo; de que a lei contratada poderia ser suspensa em nome da lei encarnada. Mas, como ensina a Escritura, “todos os deuses dos povos são demônios” (Sl 95,5) – isto é, são construções que exigem sacrifícios humanos e terminam em ruína.
O Brasil vive hoje essa inversão trágica: o juiz fala como soberano, enquanto o preso político fala como representante. O homem cercado de poder não presta contas; o homem privado de poder fala em dever. Um se coloca como fim último; o outro se reconhece como meio. Um exige reverência; o outro oferece responsabilidade.
Toda idolatria termina da mesma forma: com a queda do ídolo e o espanto tardio (real ou fingido) dos que o adoraram. Não apenas porque alguém o derrube, mas porque o peso do barro é sempre maior do que a capacidade de sustentação. Quando a rachadura aparece, já é tarde.
A carta de Bolsonaro não é um manifesto teológico, mas carrega uma intuição profundamente cristã: a política não salva, o poder não redime, e nenhum homem pode ocupar o lugar que não lhe pertence. Já o culto civil a Alexandre de Moraes revela o oposto: a tentação antiga de adorar a criatura em lugar de Deus. E, como em Fausto, o pacto mefistofélico é sempre firmado em nome de um bem maior, mas termina na mesma revelação cruel: ao tentar substituir Deus por um poder terreno, o homem não redime a história, e muito menos “salva a democracia” – apenas perde a alma, enquanto o demônio cobra, pontual, a sua parte.




