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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Povos indígenas

A Revolução do Bom Senso e uma perspectiva nativa sobre o identitarismo

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Membros dos povos nativos canadenses não querem ser tutelados por identitaristas, diz Chris Sankey. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Como tenho dito em vários artigos, o wokeísmo é uma ideologia neomarxista. Isso porque ela herda da doutrina de Marx, no mínimo, este pressuposto fundamental: a determinação material da consciência. Assim, no marxismo ortodoxo, as ideias de uma pessoa seriam determinadas por sua posição respectiva na sociedade de classes. Um burguês, por exemplo, esposaria necessariamente ideias e valores capitalistas. Um proletário, por sua vez, defenderia necessariamente ideias e valores socialistas. No caso da doutrina woke, a “classe” é substituída pela “raça”, pelo “sexo” ou pelo “gênero”, de modo que um “negro” (ou seja, alguém com um determinado conjunto de traços fenotípicos) pensa necessariamente como “negro”, uma mulher como uma mulher, um gay como um gay etc. Se, no marxismo original, a condição material de “classe” determinava a consciência das pessoas, o identitarismo woke afirma que essa consciência é determinada por sua condição material de “raça”, de sexo e de gênero.

Segundo essa concepção, por exemplo, as assim chamadas minorias raciais, sexuais e de gênero devem, necessariamente, endossar as políticas de discriminação “positiva”, como as cotas. Não haveria como ser diferente, pois a consciência “minoritária” advém da situação material minoritária, de modo que um negro contrário às cotas raciais estaria traindo sua própria consciência de raça, tanto quanto uma mulher contrária a políticas feministas ou um transexual contrário a cotas para transsexuais... Para o modelo neomarxista, esses sujeitos são tidos por aberrantes.

O identitarismo da extrema esquerda reduz indivíduos a categorias abstratas e uniformizadoras, desprezando a singularidade das experiências pessoais

E, no entanto, uma das melhores críticas que eu li recentemente às políticas identitárias foi escrita por um autor canadense herdeiro dos índios Tsimshian, habitantes históricos da costa noroeste da América do Norte. Seu nome é Chris Sankey, conselheiro eleito do distrito Lax Kw’alaams (na Colúmbia Britânica), uma das oito comunidades nas quais essa etnia se divide, e pesquisador do Instituto Macdonald-Laurier (MLI). Num texto contundente intitulado “Como a política identitária prolonga o racismo”, Sankey expõe o que muitos hesitam em admitir: longe de superar divisões, o identitarismo não passa de uma nova roupagem do velho paternalismo, aquele mesmo que há gerações submete os povos indígenas à dependência e à marginalização.

O autor afirma que o problema do identitarismo da extrema esquerda reside no núcleo mesmo dessa ideologia, que reduz indivíduos a categorias abstratas e uniformizadoras, desprezando a singularidade das experiências pessoais. Curiosamente, como observa Sankey, em geral forasteiros – gente distante e alheia às realidades locais – que pretendem definir de cima para baixo a identidade dos outros.

No que diz respeito especificamente aos povos indígenas, Sankey propõe uma verdadeira emancipação, que passe pelo fortalecimento das comunidades, pelo respeito aos direitos e pela autonomia na condução de seus próprios destinos políticos e econômicos. Ele destaca, por exemplo, a importância de permitir que as comunidades indígenas participem de forma ativa e soberana na economia de recursos, um campo frequentemente interditado por discursos paternalistas travestidos de “solidariedade”.

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“Não precisamos da política identitária para avançar na reconciliação” – observa Sankey. “Na verdade, ela é um obstáculo. O que precisamos é da liberdade para exercer nossos direitos, determinar nosso próprio futuro, sem dependência ou tutela.”

A política identitária tende a dividir o mundo em categorias raciais rígidas, reforçando o racismo que afirma combater. Sankey identifica os ativistas ambientais como exemplares perfeitos dessa lógica. Sob o pretexto de defender os índios (sempre sem querer saber se e do que eles precisam ser defendidos), esses representantes da mentalidade woke costumam recorrer ao discurso identitário para homogeneizar as vozes indígenas, tratando-as como uma única massa indiferenciada.

De acordo com Sankey, a verdadeira reconciliação exige uma abordagem radicalmente oposta: abrir às comunidades indígenas o acesso a oportunidades econômicas e políticas que há muito lhes são negadas. Portanto, em lugar da balcanização e do reforço a identidades sectárias, esse descendente dos assim chamados “povos originários” aposta na universalização dos direitos, uma conquista civilizacional ocidental.

Sob o pretexto de defender os índios, os representantes da mentalidade woke costumam recorrer ao discurso identitário para homogeneizar as vozes indígenas

A conclusão de Sankey é um tapa de luva de pelica na cara da arrogante militância identitária: “A política identitária reduz todas as pessoas a pouco mais do que sua raça ou grupo. É profundamente desrespeitoso presumir que devo defender um determinado conjunto de ideias – muitas vezes impostas por pessoas de fora da minha comunidade – apenas por ser indígena. É extremamente paternalista reduzir todas as questões a questões raciais quando nossas comunidades têm necessidades dinâmicas e importantes, como todos os canadenses (...) Por favor, parem de tentar salvar os povos indígenas. Isso nunca funcionou. O que queremos – e merecemos – são oportunidades iguais. E precisamos desesperadamente que os não indígenas parem de nos descrever de acordo com as necessidades deles, ignorando as nossas”.

Chris Sankey é uma pessoa que se recusa a abrir mão de sua consciência individual. Para os adeptos do tribalismo político-ideológico, a sua própria existência soa como um paradoxo perturbador. Mas esses podem chorar na cama que é lugar quente, pois a Revolução do Bom Senso – que reúne gente sensata das mais diferentes origens étnicas, nacionais e sociais – veio para ficar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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