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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Memória

Perdi o meu maior e mais fiel leitor

Cesar Cláudio Gordon
"Meu pai formou o escritor, assim como formou o homem. É o exemplo que seguirei para sempre." (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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“A coroa dos velhos são os filhos dos filhos; e a glória dos filhos são os pais” (Provérbios 17,6)

Que os demais queridos leitores me perdoem, mas a coluna de hoje será breve, e dedicada exclusivamente a um leitor individual, o maior e o mais fiel: meu pai.

Cesar Cláudio Gordon foi o meu primeiro leitor. Foi ele que, com suas mãos firmes e amorosas de adulto, recebeu das minhas, pequeninas, os primeiros garranchos infantis, os quais admirava e resenhava. Até o fim da vida – que se encerrou ontem, dia 16 de abril de 2025, após uma longa batalha de 45 dias no hospital –, foi também o maior fã dos meus escritos, que aguardava com avidez a cada semana.

Nas quintas-feiras, dia da coluna, papai ficava atualizando a página da Gazeta do Povo de cinco em cinco minutos para ver se a coluna já saíra. Nunca me pediu que lhe enviasse os textos originais antecipadamente, em formato .doc ou .pdf. Sendo da geração áurea do jornal, gostava de os esperar para ler no jornal (mesmo que digitalmente). Lá pelo meio da tarde (hora em que eu costumo enviar os artigos para o editor), já estava ele na fila do gargarejo, para ler o novo texto antes de todo mundo. Lia e relia. Lia e relia os comentários. Junto com minha mãe, brandia os comentários elogiosos pela casa e, também com ela, torcia o nariz para os mais críticos.

Cesar Cláudio Gordon foi um homem bom, justo e zeloso. Em tudo nos apoiou, indicando-nos o caminho do esforço, da retidão e do mérito

Meu pai foi também quem me fez um escritor, ao ter recheado a casa de boa literatura e me mostrado os clássicos (isso para não falar do que sempre nos ofereceu ao longo da vida em termos de música e arte de qualidade). Um dos seus motivos de orgulho, do qual sempre falava aos filhos e aos netos, é uma carta que recebeu de Monteiro Lobato em 28 de julho de 1947, quando tinha 9 anos. Menino criado antes da televisão, e leitor apaixonado de toda a obra infantil lobatiana, ele havia mandado ao grande escritor uma cartinha com sugestões de personagens. Lobato não apenas lhe respondeu com uma gentil carta, como também acatou uma das sugestões de papai.

Essa carta está emoldurada e pendurada na parede do apartamento onde meu papai viveu as últimas décadas com minha mãe. Com lágrimas nos olhos, e um misto de saudade lancinante e orgulho do homem em se transformou o menino da carta, fui conferir agora mesmo a data e a assinatura já bastante apagada de Monteiro Lobato. Meu pai adorava essa carta. Esse era seu espírito. Ele era essa carta.

Assim foi Cesar Cláudio Gordon, um homem bom, justo e zeloso. Tudo de melhor ofereceu aos filhos, e em tudo nos apoiou, indicando-nos o caminho do esforço, da retidão e do mérito. E, mesmo aos 87 anos, continuava vibrando com notável vivacidade, como uma criança que saltita diante de um brinquedo novo, com as nossas conquistas – da esposa, dos filhos, dos netos, das noras...

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A paixão pela família e o orgulho era tamanha que, por vezes, transbordava. Há um ou dois anos, não me recordo, recebi do amigo e colega colunista Paulo Polzonoff uma mensagem ao mesmo tempo engraçada e carinhosa: “Recebi do seu pai o seu último artigo” – disse Paulo. Ao que respondi: “Ih, Paulo. Desculpe. Meu pai, como todos de sua geração, às vezes se atrapalha um pouco com as ferramentas das redes sociais”. A resposta de Polzonoff nunca me saiu da cabeça, e acertou no alvo do qual minhas desculpas atrapalhadas me faziam desviar: “Seu pai tem orgulho de você”.

Lembrei dessa resposta ao longo do dia de ontem, em que, depois de lutar bravamente pela vida e continuar semeando o amor familiar mesmo nos instantes derradeiros, meu pai não resistiu e faleceu. Sim, era simplesmente isso: meu pai tinha orgulho de mim. Acompanhava-me o tempo todo, e nunca passou um dia de sua vida sem se interessar por mim, pelo que eu fazia, pelo que pensava, por como me sentia. Não parou de zelar por mim mesmo quando virei adulto e, portanto, foi um pai no pleno sentido da palavra.

Apesar da dor desses dias, fico aliviado de ter podido, aqui nas páginas da Gazeta e de outros veículos em que escrevo, dar esse motivo para meu pai se orgulhar. Mas mesmo esse mérito é todo dele. Ele formou o escritor, assim como formou o homem. É o exemplo que seguirei para sempre e, se Deus quiser, passarei aos meus filhos e netos. Vá com Deus, pai! E que, agora na Eternidade, como fez a vida toda, continue zelando por nós.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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