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Ninguém déte
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“Onde está, ó morte,
a sua vitória?
Onde está, ó morte,
o seu aguilhão?”
(1 Coríntios 15:55)

Nos últimos tempos, desde que Olavo começou a sofrer de problemas mais graves de saúde, confesso que me peguei pensando furtivamente na possibilidade de sua morte. Pensava no que poderia dizer para agradecê-lo por tudo o que fez pela inteligência brasileira e, muito particularmente, pela minha própria vida intelectual, que, indubitavelmente, se divide entre antes e depois de Olavo. Mas, tão logo o filósofo se recuperava e, para alívio de alunos e admiradores, voltava a dar o ar da graça – com o senso de humor costumeiro, e algum novo insight singular sobre esse ou aquele pitoresco acontecimento da nossa miserável rotina cultural nacional, apenas manifesto numa voz ligeiramente mais enfraquecida pela enfermidade –, eu afastava esses pensamentos perturbadores, bem como qualquer projeto de necrológio, convencendo-me de que o homem devia ser mesmo imortal, e de que o significado de seu nome – “o sobrevivente” – haveria de se impor para todo o sempre.

Eis que ontem, enfim, chegou a notícia inadiável, por mais rebelde permanecesse o meu espírito em face dela. Num grupo de WhatsApp, recebi um print da nota de falecimento estampada no perfil do filósofo. Cheguei ainda a entreter a esperança: seria mais um boato, uma notícia falsa? Não era. Desde então, desolado e desorientado, acho-me também na incômoda situação de querer dizer algo e não conseguir, amaldiçoando-me por não haver assimilado as tantas palavras esperançosas que o professor dedicou ao tema da morte e da vida eterna, e, assim, me preparado melhor para encarar o momento indesejado que, agora, diante da tela em branco e do cursor piscando, deixa-me mudo, com um nó na garganta.

Porque sim, momentos após receber os últimos sacramentos, Olavo de Carvalho finalmente partiu desta para a melhor – um ditado que, no seu caso, adquire pleno sentido. Provavelmente, sua chegada às portas do Paraíso não terá sido com a discrição que imaginava – com Nosso Senhor Jesus Cristo cochichando-lhe ao pé do ouvido para que entrasse depressa, enquanto ninguém estava olhando –, mas com a fanfarra e o júbilo dos que veem chegar um obstinado guerreiro da Verdade, cuja vida, entre erros e acertos, graças e pecados, foi inteiramente consagrada a procurá-La (já quase posso ver, por exemplo, São Padre Pio de Pietralcina recebendo às gargalhadas, e com semblante algo zombeteiro, aquele de cujo programa de rádio, o True Outspeak, foi padroeiro e protetor).

Provavelmente, a chegada de Olavo às portas do Paraíso não terá sido com a discrição que imaginava, mas com a fanfarra e o júbilo dos que veem chegar um obstinado guerreiro da Verdade

* * *

Lembro-me da primeira vez que tive contato com a pessoa do Olavo, em viva voz, e não mais apenas com suas ideias registradas em papel. Foi em 2006, na série de entrevistas que o filósofo concedeu ao escritor Yuri Vieira, que publicou os áudios em seu blog, no podcast O Garganta de Fogo – quando o podcast era ainda um formato incipiente –, e, em seguida, no YouTube. Antes disso, já havia lido vários de seus artigos jornalísticos publicados em veículos como O Globo, Época, Jornal do Brasil etc. À época, sendo eu de esquerda e estudante universitário de Ciências Sociais, lia-o com um misto de raiva e fascínio, procurando nos textos evidências que confirmassem meus preconceitos de imbecil juvenil, segundo os quais o sujeito não passava de louco reacionário, culturalmente nocivo e, por óbvio, politicamente perigoso. E aquele esporte tornou-se uma espécie de vício, pelo qual, quanto mais odiava o autor daqueles artigos – que a mim, típico provinciano intelectual universitário, pareciam cheios de referências excêntricas, incompreensíveis e, por isso mesmo, ameaçadoras –, menos o conseguia parar de ler.

Quando, em 2006, passei dos textos aos áudios, continuava ainda odiando o Olavo sem, obviamente, conseguir articular racionalmente os motivos, mas aceitando os condicionantes culturais do ambiente social em que me inseria, e segundo os quais era imperativo odiar alguém como ele. O estranho vício, todavia, só aumentava. Ouvindo agora a voz do sujeito que, ao mesmo tempo, me atemorizava e fascinava, fui gradualmente notando a presença de uma personalidade singular, uniforme e radicalmente autêntica, em flagrante contraste com as consciências fragmentadas que conheci na universidade, e que, bifurcando-se em personas distintas, eventualmente opostas, conforme entrassem ou saíssem da sala de aula, faziam da vida intelectual uma espécie de teatro, com falas ensaiadas e papéis a desempenhar, e no qual tudo – especialmente, talvez, minhas próprias pretensões intelectuais – soava como farsa e pose. Só mais tarde descobriria que aquela uniformidade existencial era fruto de um esforço autoconsciente, atrelado a uma definição personalíssima de filosofia, descrita como “a unidade do conhecimento na unidade da consciência”.

Àquela altura, todavia, na medida em que seguia ouvindo os bate-papos de Olavo com Yuri Vieira, fazia ainda a minha passagem por uma fase intermediária bem conhecida de muitos “olavetes” – como passaram a ser apelidados seus alunos e seguidores –, expressa num pensamento mais ou menos assim: “O sujeito é maluco, mas tem coragem de dizer coisas que ninguém mais diz”. Era o início do meu apocalipse socrático, iniciado por meio daquele Sócrates bem brasileiro, responsável por miscigenar os estilos comunicativos mais heterogênos (e, em tese, incompatíveis), por realizar a síntese cultural entre Aristóteles e Alborghetti. Cogito ergo Mussum – eis como, em dada ocasião, o professor definiu o seu projeto de uma alta cultura singularmente brasileira.

A fusão estilística entre Descartes e Mussum foi levada ao estado da arte no programa True Outspeak, projeto resultante do inesperado sucesso de audiência das entrevistas no podcast O Garganta de Fogo. E ali, ao som da voz de Olavo somava-se, então, a imagem em vídeo: dele, da família, de seu escritório, da biblioteca ao fundo, do maço de cigarros, da garrafa de Coca-Cola, da caneca de café, do cachorro Big Mac, do crucifixo na parede, das estatuetas dos santos. Diante do homem concreto, de carne e osso, a caricatura desfazia-se progressivamente, e a presença viva daquela personalidade extraordinária, fonte de informações por mim completamente ignoradas, impunha-se ao meu espírito, revirando os sentimentos de ponta-cabeça, dissipando o ódio imotivado e, muito lentamente, sem o anúncio de trombetas, fazendo nascer a admiração e, logo, a gratidão e o amor. Foi com Olavo que, como escrevi nos Agradecimentos do meu livro A Corrupção da Inteligência, aprendi a desenvolver o que gosto de chamar de altivez intelectual, o desejo de buscar a verdade ainda que o ambiente cultural do entorno nos induza a desacreditá-la ou suprimi-la.

Foi a partir dessa época – embalado por Pompa e Circunstância, marcha n.º 4, do compositor britânico Edward Elgar, utilizada na abertura do programa que mudou a história brasileira – que resolvi mergulhar a fundo na obra e no pensamento do filósofo. Li, então, sua famosa trilogia – A Nova Era e a Revolução Cultural, O Imbecil Coletivo e O Jardim das Aflições –, que, com tantas referências inauditas, me colocou num caminho irreversível de estudos, em relação ao qual toda a minha trajetória acadêmica prévia soava como um vão divertimento. Li, depois, Aristóteles em Nova Perspectiva e os demais escritos filosóficos. Acompanhei religiosamente, com ânsia de náufrago, os seus artigos jornalísticos e comentários políticos sobre o Brasil e o mundo. Procurei por suas antigas palestras e entrevistas. Adquiri os DVDs do projeto História Essencial da Filosofia. Inscrevi-me no famoso Curso Online de Filosofia (COF) e em cursos avulsos. Travei contato com outros alunos, seguidores e admiradores de Olavo, alguns dos quais se tornariam também bons amigos. Tornei-me, em suma, uma espécie de olavomaníaco, guiado pela intuição, ainda incipiente, de que encontrara ali um manancial de preciosidades educacionais das quais não podia abrir mão, sobretudo num país devastado por décadas de estagnação cultural, fruto de uma hegemonia política que, ideologizando-as de cabo a rabo, rebaixou nossas letras e nossas artes.

Explorando o site do filósofo – e, desde logo, impactado pelo lema Sapientiam autem non vincit malitia (que um dos muitos críticos imbecis, ignorante em latim, conseguiu traduzir com o sentido inverso: “a sabedoria não vence a malícia”) –, deparei-me com uma seção intitulada “Meus gurus”. Ali, pela primeira vez, fui topar com autores monumentais, que viriam a ser determinantes para a minha vida intelectual futura, formatando inexoravelmente a minha maneira de enxergar a realidade. Pensadores como Eric Voegelin, René Girard, Viktor Frankl e o nosso Mário Ferreira dos Santos, cujos nomes me haviam sido sonegados ao longo de toda a minha trajetória acadêmica. Além deles, com o professor redescobri também a grande literatura em escritores como Georges Bernanos, Jacob Wasserman, Robert Musil, entre outros. E a sétima arte, em filmes como Aurora (1927), de F. W. Murnau, considerado por Olavo, numa análise primorosa reunindo cinema e metafísica, “o melhor filme do mundo”.

Foi com Olavo que aprendi a desenvolver o que gosto de chamar de altivez intelectual, o desejo de buscar a verdade ainda que o ambiente cultural do entorno nos induza a desacreditá-la ou suprimi-la

Por intermédio de Olavo, dispus-me também a mergulhar no estudo dos clássicos, de Platão a Santo Agostinho, de Aristóteles a São Tomás de Aquino. Vem daí, da dignidade conferida pelo professor ao pensamento clássico e cristão (algo até então impensável para mim, acostumado que estava ao ambiente cético, quando não niilista e cínico, das ciências sociais brasileiras), a minha conversão intelectual ao catolicismo, conversão que, em seguida, seria também espiritual, resultando – talvez tardiamente (“Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova...”) – em batismo, primeira eucaristia e crisma.

* * *

Em 2017, por ocasião do lançamento de A Corrupção da Inteligência – fruto direto da influência intelectual de Olavo –, tive a alegria de trocar mensagens com o professor, que, generosamente, elogiou a obra e a recomendou aos seus alunos. Desde então, mantive contatos esporádicos com ele e com Roxane, sua esposa, uma alma igualmente iluminada, que em todas as oportunidades de interação – como quando lhe escrevia perguntando sobre o estado de saúde do professor – me tratou sempre com extrema gentileza. Foi assim que, do solo árido do sentimento originário e unilateral de ódio, nasceu a semente de uma relação de carinho, que poderia ser chamada propriamente de filosófica, alicerçada que foi sobre o amor comum à verdade.

Por tudo isso, a despeito de toda a fé e a esperança na imortalidade da alma, não consigo, no momento em que escrevo, transcender a tristeza da perda. E, a despeito também da convicção de que, para o desespero impotente de seus odiadores – incluindo aí os frequentadores do baixo meretrício midiático, cujo sonho parece ser mesmo o de reduzir o filósofo às dimensões de sua própria miséria existencial, donde a insistência em epítetos maliciosos tais como “guru do bolsonarismo” ou “ideólogo da nova direita” –, o legado do mestre só crescerá a partir de agora, não consigo, neste momento de luto, deixar de partilhar do sentimento manifesto pela jovem poetisa Lorena Miranda Cutlak, uma das mais talentosas alunas do Olavo, que postou o seguinte em suas redes sociais:

“Até hoje não sei por que Deus me deu o privilégio de abraçá-lo. Realmente não sei. Talvez Ele quisesse rodear o senhor, na sua enfermidade, do amor mais desarmado e mais simples. E isso nós tínhamos – e sempre teremos – para lhe dar. Foi sua primeira saída após semanas de hospital. Foi seu primeiro passeio, após anos sem ver o Brasil... Hoje choro a sua morte como uma criancinha. A poderosa musculatura da fé que nos sustenta não me impede, no fim das contas, de desejar que o senhor tivesse ficado mais algum tempo conosco. Tenho medo do presente. Tenho medo do futuro. A sua mão, que nos guiava, fará falta em uma intensidade que ainda não podemos mensurar. Provavelmente – na verdade, isto é certo – não aprendi muito bem aquilo que o senhor nos ensinou. Ter o peito aberto diante da morte, inflado pela esperança que é o próprio sopro do Espírito – eu parto os meus lábios para sorver esta Força, mas o pranto me enche os olhos, me fecha a garganta, me faz desejar ter tido melhores palavras para dizer ao senhor, naquela noite, o quanto o amamos. Infantilmente, gostaria de tê-lo de volta. O senhor se despediu de mim dizendo ‘Fica com Deus, minha amiguinha’. Hoje me despeço do senhor desejando que esteja em paz. E expresso minha eterna gratidão pela vida inteira que o senhor dedicou aos pequenos, aos simples, aos miseráveis como eu”.

Um escritor como Olavo não morre jamais. Não pode ser contida a força exuberante de sua obra, nem limitado, o alcance de sua influência

Ao contrário da Lorena, todavia, arrependo-me – inutilmente, por óbvio – por não ter me empenhado mais para conhecer Olavo pessoalmente, agradecê-lo pessoalmente, abraçá-lo... Sinto que o vazio lancinante desse abraço não dado, e o silêncio insuportável desse “obrigado” não dito, irão me acompanhar pelo resto dos meus dias. Como consolo, sigo com a esperança de que, na Eternidade, esses desencontros não terão mais a importância que lhes atribuímos aqui neste Vale de Lágrimas – em relação ao qual, aliás, o professor sempre soube manter um salutar desprendimento.

Como consolo ainda maior, ficam também estas palavras do próprio Olavo, ditas naquele seu estilo inconfundível, que tantas almas ajudou a elevar e resgatar do charco pestilento onde ora chafurdam os que, incapazes de agarrá-la ou sequer mesmo compreendê-la, por demasiados feridos em seu orgulho próprio, ressentem-se da mão estendida:

“O mais bonito é que agora é tarde para parar. Se me matarem, ou se eu fizer a gentileza de sucumbir sem isso, ainda sobrarão inéditos meus suficientes para trinta livros, e meus alunos já estão adiantados demais para ficar desencorajados só porque o professor foi para o beleléu. Como dizia o meu filho Gugu aos cinco anos: ‘Agora ninguém déte’. Se isso vai mudar o rumo das coisas políticas no Brasil, não sei, mas pelo menos da abjeção intelectual o país vai sair nem que seja a pau.”

E é isso. O luto vai passar; a saudade, ficar. Mas o fato é que um escritor como Olavo não morre jamais. Não pode ser contida a força exuberante de sua obra, nem limitado, o alcance de sua influência. Um escritor como esse “ninguém déte”. Nem mesmo a morte.

Conteúdo editado por:André Barcinski
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