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Abertura dos Estados Gerais de maio de 1789, no Palácio de Versalhes, em gravura de Isidore-Stanislaus Helman e Charles Monnet.
Abertura dos Estados Gerais de maio de 1789, no Palácio de Versalhes, em gravura de Isidore-Stanislaus Helman e Charles Monnet.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“As revoluções se fazem nos espíritos antes de passar para as coisas.” (Albert Mathiez, historiador marxista da Revolução Francesa)

Dia desses, conversava com um amigo sobre a situação econômica do Brasil e suas implicações na política. De viés liberal, e crítico feroz do lulopetismo, esse meu ex-colega de ensino fundamental lamentava que a resiliência da economia brasileira, graças sobretudo ao nosso agronegócio e à nossa mineração, pudesse garantir uma boa sobrevida ao regime, a despeito de sua catastrófica política econômica. Nesse sentido, especulou que um remédio amargo – ou seja, uma derrocada acelerada da economia – talvez pudesse abreviar o sofrimento do país. “Mas por que você acha que o remédio amargo seria melhor, no sentido de uma cura mais rápida?” – perguntei-lhe. “Porque, segundo a minha tese, o povo se revolta e essa turma cai” – respondeu.

Na coluna de hoje, quero aproveitar essa conversa para mostrar como, apesar de intuitiva, está redondamente equivocada a tese do meu amigo. Não vou me deter no caso específico do Brasil atual, que, por já estar sob uma ditadura socialista de inspiração castro-chavista, torna ainda mais implausível a conexão entre piora econômica, revolta popular e queda do regime – como, aliás, se depreende dos exemplos das ditaduras cubana e venezuelana, que, ao longo de décadas, têm mantido um povo economicamente miserável e, por isso mesmo, incapaz de se organizar a ponto de promover qualquer mudança de poder político. E não me deterei no particular por haver uma razão geral para parecer intuitiva a tese segundo a qual a piora econômica de uma sociedade tende a levar à queda dos ocupantes do poder. Essa razão é a forma como a ideia de revolução nos é ensinada na escola, sobretudo a partir do exemplo clássico da Revolução Francesa. Explico.

Por muito tempo, foi majoritária no estudo acadêmico da Revolução Francesa a abordagem marxista, para a qual essa matéria historiográfica específica deveria ser enquadrada na forma da filosofia marxista da História, segundo a qual “a História é a história da luta de classes”. Assim, deu-se muita ênfase às condições econômicas da França pré-revolucionária, atribuindo-se à fome, à pobreza e à miséria pretensamente experimentadas pelo grosso da população francesa da época o motor para a revolução que poria abaixo o Antigo Regime. Correlato a esse abismo econômico entre a elite e o povo, como se sabe, a interpretação marxista também postulava um abismo social entre os “estados” de uma nação altamente hierarquizada, contexto que teria levado o assim chamado “Terceiro Estado” (formado pela burguesia) a se revoltar contra os outros dois estados, compostos por integrantes do clero e da nobreza. Como epifenômeno (superestrutural) desse abismo socioeconômico (infraestrutural), a tese marxista sobre a determinação material da consciência – segundo a qual cada “classe” concebia o mundo a partir de suas condições econômicas, particularmente segundo a sua posição na estrutura produtiva – também sugeria a existência de um abismo cultural entre os estados, pois o Terceiro Estado francês teria uma cosmovisão, gostos e valores específicos, alheios aos do clero e da nobreza.

A Revolução não parece ter sido o resultado de um excesso disruptivo de distância social entre os estados, como pretendeu a interpretação marxista, mas justo o contrário. Ela foi a consequência da gradativa aproximação entre os estados

Disse que, por muito tempo, essa interpretação foi majoritária nos estudos acadêmicos sobre a revolução na França, capitaneada por pesos-pesados da intelectualidade francesa, como Jean Jaurès, Albert Mathiez e Georges Lefebvre. Mas já há um bom tempo que essa situação mudou, e que a historiografia marxista virou objeto de uma cerrada crítica, formulada por estudiosos que a consideraram demasiado simplista, reducionista e, no trato com as fontes, comprometida por petições teóricas de princípio. E disso falaremos um pouco mais à frente. Deve-se lamentar, todavia, que essa mudança de clima de opinião sobre o fenômeno na academia não se tenha traduzido no ambiente letivo, no qual a visão marxista continua predominante, reproduzida acriticamente em dez entre dez livros didáticos de História universal. Daí que, a não ser que tenha decidido enveredar pelo estudo da História no ensino superior, ou no decorrer de sua vida adulta, uma pessoa que sabe de revolução apenas aquilo que aprendeu quando criança durante os tempos de escola decerto terá do fenômeno, e dos processos de mudança de poder político em geral, uma visão bastante equivocada. Meu amigo encaixa-se no perfil. Sei porque estive com ele nos bancos escolares, sorvendo a mesma interpretação histórica processada, que por muito tempo também me pareceu intuitiva.

Apesar de parecer intuitiva, contudo, o fato é que, à luz das novas fontes e análises de fontes disponíveis, a clássica interpretação marxista segundo a qual a Revolução Francesa foi o resultado de uma revolta popular incontrolável, o corolário historicamente necessário de uma luta de classes entre a burguesia (representante do modo de produção capitalista) e a nobreza (representante do modo de produção feudal), parece cada vez mais insustentável. Como mostrou o historiador Alfred Cobban em Social Intepretation of the French Revolution – obra que, publicada em 1964, provocaria um verdadeiro escândalo no status quo historiográfico sobre o período –, havia muito mais mobilidade social na França de fins do século 18 do que normalmente se imagina. Antes que integrantes de uma burguesia no sentido dicionarizado do termo, a maior parte dos membros do Terceiro Estado eleitos para a Assembleia Geral não era de artesãos e comerciantes, mas de burgueses a caminho de se tornarem nobres, incluindo muitos juízes e funcionários públicos. Alguns viviam da renda das terras que haviam comprado, estando, portanto, muito distantes do comércio. A bem da verdade, mal existia na França uma “burguesia” no sentido moderno do termo, essencialmente urbana e mercantil. Na época da Revolução, apenas 15% da população francesa vivia em centros urbanos. A maior parte da burguesia vivia de renda fundiária.

Ocorre que a nobreza se expandia ao tempo de Luís XVI, pois havia várias formas de se adquirir títulos de nobreza. Ao contrário do que se passa num sistema de castas típico, ao fim do Antigo Regime a aquisição de títulos nobiliárquicos tinha virado uma questão mais de dinheiro que de nascimento. Não é exagero dizer que, no período que antecedeu a Queda da Bastilha, um nobre nada mais era do que um burguês bem-sucedido. Nesse sentido, havia na França pré-revolucionária uma situação de aproximação social entre os estados como jamais houvera anteriormente. Daí que, para Cobban – e muitos outros autores que, depois dele, passaram a ser tachados de “revisionistas” –, o que explicaria a Revolução seriam conflitos intra-“classe”, e não entre “classes”.

Se assim era no que diz respeito à estrutura social, do ponto de vista cultural, ou do imaginário coletivo, a proximidade entre os estados na França setecentista era ainda mais notável. As ideias revolucionárias, fomentadas havia décadas nos clubes e salões iluministas, passaram a fazer a cabeça dos membros de todas as “classes”, sobretudo o clero e a nobreza, o que conferiu à Revolução um caráter eminentemente ecumênico. Em O Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville apontou a futilidade suicida da nobreza francesa da época, atraída por modismos intelectuais que mal compreendia, mas que achava divertidos e chiques. Mais tarde, o historiador Pierre Gaxotte resumiu a questão: “Há milhares de lindas cabeças empoadas que se embriagam com as teorias que acabarão por fazê-las rolar para dentro do cesto de Sansão [célebre carrasco francês da época]”. Mas, sobre a adesão entusiasmada às ideias e sensibilidades protojacobinas por parte da aristocracia francesa, nenhuma fonte se compara ao testemunho de quem esteve lá, participando diretamente de toda a agitação revolucionária. Eis, por exemplo, o que registra o diplomata Louis-Philippe de Ségur, ou simplesmente Conde de Ségur, em seu livro de memórias:

“Quanto a nós, jovem nobreza francesa, sem saudades do passado e sem preocupação pelo futuro, caminhávamos alegremente sobre um tapete de flores que nos ocultava um abismo. Rindo-nos com escárnio das modas antigas, do orgulho feudal de nossos pais e das suas solenes etiquetas, tudo quanto era antigo nos parecia incômodo e ridículo. As antigas doutrinas, com a sua sisudez, eram um peso para nós. A liberdade, fosse qual fosse a sua linguagem, agradava-nos pela sua coragem, como a igualdade nos agradava por sua comodidade. Encontra-se prazer em descer, desde que se acredite que se pode tornar a subir até ao ponto desejado; e nós, sem qualquer espécie de previdência, desfrutávamos, ao mesmo tempo, as vantagens, os patriciados e as doçuras de uma filosofia plebeia. Assim, embora nos minassem sob os pés os nossos privilégios, ruínas do nosso antigo poder, esta pequena guerra agradava-nos. Não lhe experimentávamos os golpes nem outra coisa tínhamos dela senão o espetáculo. Continuando intactas as formas do edifício, não percebíamos que o estavam a minar por dentro. E riamo-nos dos graves alarmes da velha corte e do clero, que trovejavam contra este espírito de inovação. Aplaudíamos as cenas republicanas dos nossos teatros, os discursos filosóficos das nossas academias e as obras ousadas dos nossos literatos.”

Portanto, a Revolução não parece ter sido o resultado de um excesso disruptivo de distância social entre os estados, como pretendeu a interpretação marxista, mas justo o contrário. Ela foi a consequência da gradativa aproximação entre os estados. Isso tanto de um ponto de vista social – demonstra Cobban em seu livro – quanto, sobretudo, de um ponto de vista cultural, com a formação de um imaginário coletivo comum, perpassando todos os estados. Para bem compreender a Revolução – e todo fenômeno político de mesmo tipo –, o segredo não está na luta de classes, mas no desejo mimético. Precisamos de menos Karl Marx e mais René Girard. Retomarei o assunto na coluna da semana que vem.

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