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Flavio Gordon

Flavio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

O Cristianismo contra o Estado

Igreja
(Foto: BigStock)

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“Retorna o sangue pagão! O Espírito está próximo; por que Cristo não me ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o Evangelho morreu. O Evangelho! O Evangelho” (Arthur Rimbaud, Uma Temporada no Inferno)

Diga-se sem meias-palavras: o Cristianismo foi, é e será o único antídoto eficaz contra a sacralização da política e, consequentemente, contra o totalitarismo. Para quem acha a afirmação exagerada, basta lembrar o que pensavam alguns dos pais intelectuais do totalitarismo acerca dessa religião.

Comecemos no século XVI, com os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio (1531), em que Maquiavel exalta a vitalidade espetaculosa das cerimônias pagãs: “Quando se considera que os povos da antiguidade amavam a liberdade mais do que os da nossa época, parece-me que a razão é a mesma que explica por que hoje os homens são menos robustos - o que se relaciona, a meu juízo, com a diferença entre a nossa educação e a dos antigos, e a diferença, igualmente grande, entre a nossa religião e a dos antigos”.

O pensador florentino prossegue, tecendo loas aos espalhafatosos sacrifícios rituais da antiguidade clássica, que lhe excitam a imaginação: “Com efeito, nossa religião, mostrando a verdade e o caminho único para a salvação, diminuiu o valor das honras deste mundo. Os pagãos, pelo contrário, que perseguiam a glória (considerada o bem supremo), empenhavam-se com dedicação em tudo que lhes permitisse alcançá-la. Vê-se indícios disto em muitas das antigas instituições, a começar pelos sacrifícios, esplendorosos em comparação com os nossos, bastante modestos, e cujo rito, mais piedoso que brilhante, nada oferece de cruel capaz de excitar a coragem”.

E ainda: “A pompa das cerimônias antigas era igual à sua magnificência. Havia sacrifícios bárbaros e sangrentos, nos quais muitos animais eram degolados; e a visão reiterada de um espetáculo tão cruel endurecia os homens. As religiões antigas, por outro lado, só atribuíam honras divinas aos mortais tocados pela glória mundana, como os capitães famosos, ou chefes de Estado”.

A essa demonstração de vigor espiritual, Maquiavel opõe uma pretensa tibieza estética e moral do Cristianismo: “Nossa religião, ao contrário, só santifica os humildes, os homens inclinados à contemplação, e não à vida ativa. Para ela, o bem supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do mundo. Já os pagãos davam a máxima importância à grandeza d’alma, ao vigor do corpo, a tudo, enfim, que contribuísse para tornar os homens robustos e corajosos. Se a nossa religião nos recomenda hoje que sejamos fortes, é para resistir aos males, e não para incitar-nos a grandes empreendimentos. Parece que esta moral nova tornou os homens mais fracos, entregando o mundo à audácia dos celerados”.

Em Do Cidadão (1642), no século seguinte, Thomas Hobbes apresenta a sua versão secularizada (ou imanentizada) do Cristianismo, sendo um dos primeiros autores modernos a diagnosticar o risco que a autêntica devoção cristã representava para qualquer autoridade política terrena: “O que pode ser mais pernicioso a qualquer Estado do que ter seus cidadãos impedidos de obedecerem a seus príncipes por medo de castigos eternos?” – questiona o teórico do absolutismo.

Mais tarde, no Leviatã (1651), o filósofo abole definitivamente a clássica distinção conceitual agostiniana entre a cidade terrena e a cidade celeste, distinção que, por dez séculos, se havia consolidado no imaginário político ocidental: “Governo espiritual e temporal são apenas palavras trazidas ao mundo para confundir os homens, enganando-os quanto a seu soberano legítimo… Nesta vida, o único governo existente, seja ele do Estado ou da Religião, é o governo temporal”.

Já no século XVIII, pegando o bastão das mãos de Hobbes, Jean-Jacques Rousseau avançou na corrida pela descristianização do Ocidente. Em O Contrato Social (1762), “o insano Sócrates da Assembleia Nacional” (como o chamava Edmund Burke) reconhece a dívida intelectual para com o antecessor britânico: “De todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único a ter enxergado a doença e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças da águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado ou governo será jamais bem constituído. Mas ele deveria ter percebido que o espírito dominante do Cristianismo era incompatível com o seu sistema, e que a lealdade ao padre seria sempre mais forte que a lealdade ao Estado”.

Rousseau vai além, chegando a antecipar o tema nietzscheano da moralidade de escravos: “O Cristianismo é uma religião de todo espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele cumpre o seu dever, mas fá-lo com uma profunda indiferença no que concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui embaixo. Se o Estado floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade pública; receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se o Estado perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo… O Cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; e eles o sabem, e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus olhos”.

No século XIX, Nietzsche desenvolve uma crítica mais existencial, e menos explicitamente política, ao Cristianismo. Também desprezando a relativização cristã do poder temporal, em A Vontade de Poder (1906) o filósofo chega a fazer uma apologia da lógica sacrificial pagã: “Pelo fato de que o Cristianismo empurra para o primeiro plano a doutrina do desinteresse e do amor, ele ainda não postulou, de modo algum, o interesse da espécie como um valor mais alto do que o interesse individual. Seu efeito propriamente histórico, a fatalidade do efeito, permanece, ao contrário, justamente o incremento do egoísmo, do egoísmo individual até um ponto extremo (até o ponto extremo da imortalidade individual). O indivíduo isolado foi tomado, com o cristianismo, de modo tão importante, posto de modo tão absoluto, que não se podia mais sacrificá-lo: mas a espécie só existe por meio do sacrifício humano”.

Na pena de Nietzsche, a principal virtude do Cristianismo torna-se a sua maior fraqueza, e o que vemos na obra é uma retomada das críticas que os pensadores romanos costumavam lançar contra a nova religião, a qual muitos atribuíram a culpa pela queda do Império.

Escreve o homem que decretou a morte de Deus: “Todas as ‘almas’ seriam iguais perante Deus: mas esta é justamente a mais perigosa de todas as possíveis valorações! Equiparam-se os indivíduos, e assim põe-se em dúvida a espécie, favorece-se uma práxis que chega a ser a ruína da espécie: o Cristianismo é o contraprincípio oposto à seleção. Se o degenerado e doente (‘o cristão’) deve ter tanto valor quanto o saudável (‘o pagão’), ou mesmo ainda mais, segundo o parecer de Pascal sobre saúde e doença, então o curso natural de desenvolvimento acha-se invertido e a não-natureza tornou-se lei... Esse amor universal aos homens é, na prática, a prerrogativa de todos os sofredores, malsucedidos e degenerados: ela, de fato, arruinou e amorteceu a força, a responsabilidade, o alto dever de sacrificar homens. Segundo o esquema do critério de valor cristão, ainda restaria apenas sacrificar-se a si mesmo: mas esse resto de sacrifício humano, que o cristianismo concedeu e ele mesmo aconselhou, não tem mais nenhum sentido, do ponto de vista da cultura total. Para o crescimento da espécie é indiferente se um indivíduo isolado qualquer se sacrifica a si mesmo (seja ao modo monástico ascético ou com o auxílio de crucificações, fogueiras e cadafalsos, como ‘mártir’ do erro). A espécie tem necessidade do ocaso dos falhados, fracos e degenerados: mas o cristianismo recorre justamente a eles como potência conservadora, e esta faz aumentar ainda mais aquele instinto dos fracos, em si mesmo já tão potente, de se pouparem, se conservarem e de se manterem reciprocamente. O que é a ‘virtude’ e o ‘amor humano’ no Cristianismo senão precisamente essa reciprocidade da conservação, essa solidariedade dos fracos, esse impedimento à seleção? O que é o altruísmo cristão senão o egoísmo das massas de fracos, o qual adivinha que, se todos cuidarem uns dos outros, cada um se conservará o máximo possível?... Se não se sente uma tal mentalidade como uma extrema imoralidade, como um crime contra a vida, é porque se pertence à parte doente e se possuem os seus instintos… O autêntico amor humano exige o sacrifício para o máximo bem da espécie – ele é duro, ele é uma plena autossuperação, pois precisa do sacrifício humano. E esta pseudo-humanidade, que se chama cristianismo, quer justamente conseguir que ninguém seja sacrificado”.

Sabemos bem as terríveis consequências que, dali a algumas décadas, esse elogio do sacrifício e da “vitalidade” pagã trariam para a terra natal de Nietzsche. E, se talvez seja injusto atribuir ao filósofo a responsabilidade direta pelo Holocausto (afinal, ele nutria alguma simpatia pelos judeus), é inegável que esse tipo de argumento nos ajuda a compreender o fundamento evolucionista e sacrificial da empreitada nazista. Como observou René Girard em Eu via Satanás Cair como um Relâmpago: “Se existe uma essência espiritual do movimento, ela é expressa por Nietzsche”.

Com efeito, ninguém menos que o próprio Adolf Hitler manifestou em relação ao Cristianismo desprezo similar, e só mesmo uma ignorância histórica monstruosa pode levar alguns secularistas contemporâneos a apontar a pretensa fé cristã do líder nazista. Para notá-lo, basta ler estas suas declarações testemunhadas por Albert Speer, ex-ministro do armamento do Reich, que as transcreveu em seu livro de memórias: “Veja você que o nosso azar foi ter a religião errada. Por que não tivemos a religião dos japoneses, que consideram o sacrifício pela pátria como o bem supremo? Também a religião maometana nos seria muito mais compatível do que o Cristianismo. Por que tinha de ser o Cristianismo, com sua humildade e frouxidão?”

Traudl Junge, a última secretária pessoal de Hitler, também registrou esse seu pendor sacrificial, nietzscheano e anticristão: “Às vezes tínhamos interessantes discussões sobre a igreja e o desenvolvimento da raça humana. Na verdade, chamá-las de discussões é um exagero, porque ele começava a explicar suas ideias quando um de nós fazia alguma pergunta ou comentário, e apenas ouvíamos. Ele não era membro de nenhuma igreja, e achava que as religiões cristãs eram instituições ultrapassadas e hipócritas, que atraíam as pessoas como uma isca. Sua religião eram as leis da natureza. O seu dogma de violência combinava mais com a natureza do que com a doutrina cristã do amor ao próximo e ao inimigo. ‘A ciência ainda não é clara sobre as origens da humanidade’, disse certa vez. ‘Estamos provavelmente no estágio mais avançado de algum mamífero que, evoluindo a partir dos répteis, prosseguiu até os seres humanos, talvez via os macacos. Somos parte da criação e filhos da natureza, e as mesmas leis se aplicam a nós bem como a todas as criaturas vivas. Na natureza, a lei da luta pela sobrevivência se impôs desde o início. Tudo o que é mal-adaptado à vida, tudo o que é fraco, é eliminado. Apenas a humanidade, e sobretudo as igrejas, dedicaram-se a manter vivos os fracos, os mal-adaptados, as pessoas de uma espécie inferior”.

É importante notar que todos esses representantes da modernidade ocidental desprezaram o Cristianismo justo naquilo que tem de sui generis, a saber, a sua capacidade de relativizar o poder político mundano – erguido, em última instância, sobre a lei do mais forte – e encará-lo sub specie aeternitatis, ou do ponto-de-vista da Eternidade.

O processo de secularização no Ocidente, de Maquiavel a Hobbes, de Rousseau a Nietzsche, passando por Feuerbach, Marx e outros hegelianos, tem consistido numa permanente tentativa de eliminar a tensão cristã entre poder espiritual e poder temporal, tal como paradigmaticamente simbolizada por Agostinho no binômio Cidade de Deus vs. cidade dos homens. Com isso, trata-se de fazer com que o poder temporal passe a englobar e absorver o poder espiritual, entregando a César até a parte que cabe a Deus.

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