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“Depois do aniquilamento dos inimigos armados, haverá ainda os inimigos não armados; estes lutarão contra nós numa batalha de morte; não devemos nunca subestimá-los. Se o problema não for colocado ou compreendido desde já nestes termos, cometeremos os mais graves erros” (Mao Tse-tung)
“Um cidadão desses é um animal selvagem, não é um ser humano (...) Essa gente que nasceu no neofascismo, colocado em prática no Brasil, tem que ser extirpada (...) Vocês têm de estar preparados, porque nós derrotamos o Bolsonaro, mas não derrotamos o bolsonarismo ainda” (Luís Inácio Lula da Silva)
Na China do final dos anos 1980, época do Massacre da Praça da Paz Celestial, uma piada costumava circular, a boca pequena, no meio do povo. Ela narrava a conversa entre um americano patriota e um cidadão chinês, submetido ao regime comunista. Dizia com orgulho o americano: “Meu país é tão livre que posso ir a uma praça pública na capital e gritar ‘Ronald Reagan é um idiota’, e nada vai me acontecer. A polícia nem vai me prender. Dá para acreditar?”. Ao que o chinês retrucava: “Isso não é motivo de orgulho. Meu país é tão livre quanto. Posso ir à Praça Tiananmen e gritar ‘Ronald Reagan é um idiota’, e também nada vai me acontecer. A polícia nem vai me prender”.
A piada é uma versão chinesa do conhecido “Teste da Praça Pública” inventado por Natan Sharansky, o dissidente soviético que se tornou figura política em Israel – e que pode muito bem ter ouvido uma versão semelhante da mesma piada na Moscou nos anos 1980, com a Praça Vermelha no lugar da Praça Tiananmen. Sharansky formula esse teste – que divide as nações entre aquelas que são livres e aquelas que não são, com base no que as pessoas podem dizer e fazer em público – em seu livro The Case for Democracy, publicado em 2004.
Pouco depois da publicação, George W. Bush, então presidente dos Estados Unidos, e sua conselheira próxima, Condoleezza Rice, passaram a mencionar reiteradamente o Teste da Praça Pública. Durante sua audiência de confirmação no Senado para o cargo de Secretária de Estado, Rice lembrou que, em muitas partes do mundo, os últimos anos do século XX haviam testemunhado avanços significativos no abandono das ditaduras e na direção da democracia. Como especialista em estudos soviéticos, ela se referia, obviamente, à queda do Muro de Berlim e à implosão da URSS.
Depois de lembrar que, naquele início de século 21, ainda existiam “postos avançados de tirania”, onde as pessoas não eram livres, Rice fez referência ao argumento central de The Case for Democracy:
“O mundo deveria realmente aplicar o que Natan Sharansky chamou de Teste da Praça Pública. Se uma pessoa não pode ir até o centro da praça pública e expressar suas opiniões sem medo de ser presa, encarcerada ou sofrer agressões físicas, então essa pessoa vive em uma sociedade do medo. E não podemos descansar enquanto cada residente de uma tal sociedade não tenha conquistado finalmente a sua liberdade”.
Embora não tivesse mencionado diretamente a China como uma “sociedade do medo” – incluindo nessa categoria apenas dois de seus vizinhos, Mianmar (Birmânia) e Coreia do Norte – é provável que, já ali em 2005, e como muitos outros no Ocidente, ela considerasse a China como um caso de reprovação no Tese da Praça Pública.
E, obviamente, Rice tinha razão. Se perguntarmos se a China é um país onde um cidadão comum pode ir à Praça Tiananmen, em Pequim, ou a locais comparáveis (como a Praça do Povo, em Xangai) e gritar comentários insultuosos contra um dos principais líderes do governo, a resposta é definitivamente não. Se mudarmos a pergunta para incluir os jornais, também é verdade dizer que as publicações vendidas abertamente nas proximidades dessas mesmas praças centrais do continente não podem publicar editoriais ou charges políticas que ataquem um líder nacional ou uma política central do Partido. Portanto, no quesito liberdade de expressão, nada mudou dos anos 1980 até o presente.
Aliás, mudou sim. Para pior. Rice falava ainda numa época em que a referência à “praça pública” era a praça física, o local concreto na qual as pessoas iriam ou não manifestar presencialmente o seu inconformismo. Hoje, com as redes sociais, esse local ampliou-se bastante. O cimento, o concreto, o paralelepípedo, o ferro, a grama e todos os outros materiais observáveis nas praças transformaram-se em bits e bytes. Como se exprimiu Elon Musk logo que comprou o X/Twitter, as redes sociais são “a praça da cidade digital onde são debatidos assuntos vitais para o futuro da humanidade”. Sendo assim, é claro que um regime ditatorial como o chinês não deixaria essa nova praça livre do controle do Partido.
Eis que a ditadura comunista mudou de estilo, combinando as distopias de Orwell e Huxley, 1984 com Admirável Mundo Novo. Ela já não se impõe principalmente com tanques ou campos de reeducação visíveis (embora, como se saiba, estes ainda existam na China, como no caso dos uigures). Ela se infiltra pelas redes, pelos algoritmos e pelas câmeras. A China de Xi Jinping já não precisa – ou não precisa exclusivamente – recorrer aos métodos do terror maoísta para controlar sua população. A vigilância agora é silenciosa, onipresente e digital. O Estado chinês ergueu uma arquitetura tecnológica de dominação que combina inteligência artificial, reconhecimento facial, big data, 5G e censura algorítmica em uma estrutura que tornou o país um panóptico informacional.
Como escreve o jornalista Bill Gertz no livro Deceiving the Sky: Inside Communist China’s Drive for Global Supremacy, publicado em 2019:
“Vinte anos atrás, o governo chinês e o Partido Comunista da China mantinham-se no poder por meio do uso de uma polícia política e um aparato de segurança implacáveis, dirigidos por órgãos estatais para controlar uma população de mais de um bilhão de pessoas. Era um regime de segurança modelado segundo a temida KGB da União Soviética. Hoje, os governantes da China estão impondo um sistema modernizado de totalitarismo de alta tecnologia, utilizando ferramentas de repressão apoiadas por tecnologias avançadas – reconhecimento facial, inteligência artificial, mineração de grandes dados e um sistema de crédito social de controle pessoal que busca emular aquilo que os líderes soviéticos chamavam de criação forçada do Novo Homem Soviético”.
Em 2018, segundo o autor, a China já havia implantado um novo sistema tecnológico de controle baseado, em parte, em uma estimativa de 200 milhões de câmeras de vigilância espalhadas pelo país. As câmeras parecem estar em todos os lugares – em postes, postes de iluminação, tetos, semáforos. Até 2020, o regime esperava ter 626 milhões de câmeras instaladas, ligadas a redes de telecomunicações 5G de alta velocidade e alimentadas por inteligência artificial, big data e aprendizado de máquina.
O objetivo era criar um sistema digital de controle social capaz de monitorar todos os aspectos da vida de cada cidadão chinês. Com base no comportamento, nos registros financeiros, nas opiniões políticas e até nas conexões pessoais, o governo seria capaz de conceder ou retirar privilégios (como a permissão para viajar, conseguir emprego, obter crédito ou acessar educação) dependendo do grau de “confiabilidade” de cada indivíduo, segundo avaliação do comitê central do Partido Comunista.
Para reforçar esse sistema, o Partido Comunista Chinês tem investido pesadamente em tecnologias de inteligência artificial capazes de reconhecer rostos, rastrear movimentos, analisar padrões de comportamento e prever ações futuras. As empresas de tecnologia, muitas delas de fachada ou diretamente ligadas ao aparato de segurança do Estado, trabalham em estreita colaboração com as autoridades para integrar essas tecnologias a todos os níveis da vida urbana e rural.
É isso que Gertz chama de “totalitarismo digital”: um modelo de dominação em que a repressão não é apenas exercida por meio do medo físico, mas por um controle psicológico permanente e invisível, no qual os cidadãos passam a se autocensurar e a ajustar seu comportamento em tempo real para evitar punições. Eis o sonho de todo regime autoritário. Eis o pesadelo para qualquer defensor das liberdades individuais.
Sobre o controle à internet, o autor mostra como a característica central da repressão chinesa de alta tecnologia é o Grande Firewall, uma barreira digital equivalente às suas famosas muralhas, que isolam o país do resto do mundo. Gigantes como o Google, o Instagram e o X/Twitter – os três meios online e de mídia social mais populares que sustentam a comunicação e o compartilhamento de informações para centenas de milhões de cidadãos ao redor do mundo – são bloqueados no país. Com o bloqueio, o regime força os seus cidadãos a depender de um rígido sistema de propaganda e controle de informações, no qual noções como “liberdade de expressão” tornaram-se até mesmo inconcebíveis, como brumas de um passado esquecido.
Nas palavras de Geertz:
“A ameaça à liberdade na internet representada pela China é uma das mais significativas ameaças à liberdade enfrentadas pelo mundo – e precisa ser combatida se quisermos que nossa era digital sobreviva e não seja controlada por totalitários”.
Combatida? Pois, no Brasil do regime PT-STF, o modelo comunista chinês não apenas não tem sido combatido, como tem sido importado e servido de referência aos nossos tiranos. Como disse o mandatário brasileiro depois de seu encontro com o ditador chinês: “Eu perguntei ao companheiro Xi Jinping se era possível enviar para o Brasil uma pessoa da confiança dele para discutir a questão digital, sobretudo o TikTok”.
Assim é que, tanto no mundo real (como provam as prisões políticas do 8 de janeiro) quanto no mundo digital, o Brasil de nossos dias é vergonhosamente reprovado no Teste da Praça Pública. Resta-nos subir no caixote e mandar o “Ronald Reagan” para a pqp...




