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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Tarifaço

Esperando Obama

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Senadores brasileiros acham que Barack Obama pode ajudar a reverter "tarifaço" de Trump. (Foto: EFE/EPA/Will Oliver)

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“Sempre encontramos algo, não é, Didi, para nos dar a impressão de que existimos?” (Esperando Godot, Samuel Beckett)

Eu tive de ler, reler, e tornar a ler a notícia. Ainda assim, depois da terceira leitura, seguia incrédulo diante da revelação de que um grupo de senadores brasileiros, em missão diplomática aos Estados Unidos, aposta no ex-presidente Barack Obama como um “trunfo” para sensibilizar Donald Trump e convencê-lo a aliviar o tarifaço imposto ao Brasil. A proposta, digna de figurar em portais de sátira jornalística, expõe de forma involuntária o tamanho da ignorância geopolítica e o provincianismo atávico de nossa classe política.

A trapalhada – que envolve, entre outros, o astronauta Marcos Pontes (PL), figura que parece empenhada em dar razão à velha piada de que vive na Lua – evidencia a confusão, muito típica de uma cultura nacional estetista, entre diplomacia real e encenação cerimonial. Nossos representantes, deslumbrados com as benesses do mandato, exibem uma orgulhosa incultura, bem como uma notável incapacidade de distinguir entre um embate geopolítico dramático e uma troca de amenidades em coquetel de embaixada.

Ao ler matérias sobre o assunto, fui tomado por uma sequência de reações: primeiro, o riso descontrolado; depois, o silêncio atônito; por fim, a depressiva constatação da falência cognitiva do país – algo que, embora diagnosticado reiteradamente por tantos, ainda tem o poder de surpreender. Imaginar que, em meio à escalada de tensões comerciais e diplomáticas com os EUA, nossos senadores vislumbrem em Barack Hussein Obama a chave mágica capaz de abrir as portas do coração de Donald Trump é mesmo desalentador. Como se, com um sorriso e alguns slogans inspiradores sobre “esperança” e “mudança”, o ex-presidente pudesse amansar o lobo de Mar-a-Lago. Como se, com a voz embargada (pun intended), Trump fosse dizer: “Yes, we can! Lower the tariffs on Brazil!”

Os senadores aloprados desembarcarão em Washington no exato momento em que Trump acusa Obama de orquestrar a farsa do “conluio russo” nas eleições de 2016

A proposta revela um completo desconhecimento do noticiário político americano, em especial do que tem se passado na terra do Tio Sam precisamente nos últimos dias. Se é verdade que Donald Trump nunca enxergou em Barack Obama um adversário político legítimo, pois sempre intuiu o caráter antiamericano da ideologia e do projeto obamista, agora mesmo é que ele vê no democrata um arquétipo da corrupção sistêmica, da manipulação judicial e da instrumentalização das agências de inteligência como instrumentos de perseguição política. Daí que o timing dos senadores aloprados não pudesse ser pior, pois desembarcarão em Washington no exato momento em que Trump acusa Obama de orquestrar a farsa do “conluio russo” nas eleições de 2016.

Uma matéria da Fox News denuncia o envolvimento direto do Departamento de Justiça (DOJ) da era Obama na fabricação da fraude conhecida como Russiagate, segundo a qual Donald Trump teria sido eleitoralmente favorecido pela ajuda da Rússia de Vladimir Putin. Essa operação, conduzida com ares de conspiração de Estado, utilizou dossiês forjados, abusou da vigilância do FBI e teve o endosso entusiasmado de agentes democratas para alimentar um dos maiores escândalos políticos da história recente dos EUA. Na condição de vítima, Donald Trump está verdadeiramente obcecado com o tema. E, obviamente, com o personagem acusado.

Aos olhos do atual presidente americano, portanto, Obama não é apenas um adversário político. É o autor intelectual daquilo que Trump e muitos analistas conservadores chamam de The Coup That Failed – “o golpe que fracassou”. Apresentar o líder dessa trama como “trunfo” em tratativas com Trump é tão absurdo quanto procurar reconciliação entre Israel e Irã apresentando o aiatolá Khamenei como mediador em Jerusalém. É preciso não apenas ignorar os fatos, mas, sobretudo, ser intelectualmente preguiçoso e moralmente indiferente ao significado do que está em jogo.

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A realidade é que, para Trump, Obama simboliza tudo aquilo contra o qual ele se levantou em sua insurgência política: o globalismo sem rosto, a burocracia parasitária de Washington, a submissão do interesse nacional a agendas ideológicas cosmopolitas, o desprezo pelas classes trabalhadoras e o uso cínico do discurso das “minorias” como alavanca de poder. O Obama Legacy é, para Trump, não apenas algo a ser superado, mas desmantelado – tijolo por tijolo. É por isso que, já em seu primeiro mandato, ele dedicou esforços sistemáticos para desmontar as principais políticas do antecessor: do acordo nuclear com o Irã à regulação ambiental, do Obamacare às diretrizes educacionais do Departamento de Estado. Mas o plano agora é mais ambicioso, consistindo nada menos que na desobamização da América.

E, no entanto, é justamente em Obama que os nossos senadores enxergam um interlocutor privilegiado. A escolha diz muito sobre a precária formação cultural e intelectual das nossas elites. Alimentados pela máquina de desinformação da CNN Brasil e da Globo News (não raro causada por ignorância genuína), sua visão dos Estados Unidos é a de um país onde Obama é unanimidade, Trump é um palhaço troglodita e Alexandria Ocasio-Cortez é a nova Margaret Thatcher. Essa imagem permanece intacta mesmo entre segmentos ditos conservadores da política nacional, mais preocupados com performance estética do que com substância ideológica. Nomes como Marcos Pontes, Teresa Cristina ou até mesmo Tarcísio de Freitas são, nesse aspecto, mais parte do problema que da solução.

Ao recorrer a Obama como fiador moral de seus pleitos, os senadores não apenas erram na tática. Eles revelam a continuidade de uma tradição diplomática corrompida pela esquerda: o culto à aparência em detrimento da realidade, ao prestígio de cúpula em detrimento do interesse nacional. No imaginário forjado durante o período tucanopetista, Obama foi alçado à condição de símbolo máximo da civilidade, da modernidade e do “mundo que nos respeita” – enquanto Trump era pintado como o bufão racista e misógino, indigno de figurar na galeria de “parceiros civilizados”.

Para Trump, Obama simboliza tudo aquilo contra o qual ele se levantou em sua insurgência política

Essa caricatura persiste. E impede nossas elites de compreender a guinada conservadora dos EUA, a crise do progressismo identitário como plataforma de governo, e o renascimento do patriotismo popular mundo afora. Enfurnadas na melancólica paróquia de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, não percebem a reorganização geopolítica em curso. E continuam agindo como se o mundo fosse, ainda, um grande palanque da ONU ou uma conferência da Unesco (da qual, aliás, os EUA acabam de se retirar).

Nesse contexto, a simples menção ao nome de Obama não só não abre portas – como as fecha com estrondo. Assim, o único “Yes, we can” que Trump poderá lhes dirigir é: “Yes, we can ignore you”.

Por fim, resta aos nossos bravos senadores fazerem como canta Chaves, o imortal personagem de Roberto Gómez Bolaños: “Volta o cão arrependido / Com suas orelhas tão fartas / Com seu osso roído / E com o rabo entre as patas”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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