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Assassinos de vaquinhas
| Foto: Flash Alexander/Pixabay

Muito tempo atrás, alguém me contou a história da vaquinha. Se você não a conhece, transcrevo a seguir a versão que ficou em minha memória.

Um mestre passeava por uma floresta com seu jovem discípulo, quando avistou ao longe um sítio de aparência pobre, e resolveu fazer uma breve visita. Durante o percurso, ele falou ao aprendiz sobre a importância das visitas e das oportunidades de aprendizado que temos, mesmo com pessoas que não conhecemos. Chegando ao sítio, eles constataram a pobreza do lugar. A casa era de madeira, sem acabamento, com aparência de “caindo aos pedaços”. Os moradores – um casal e três filhos – estavam vestidos com roupas velhas e esgarçadas.

O mestre perguntou ao senhor que parecia ser o pai daquela família: “Como vocês sobrevivem neste lugar? Não vi comércio nem gente num raio de cinco quilômetros”. O patriarca respondeu: “Meu senhor, temos uma vaquinha que nos dá vários litros de leite todos os dias. Um terço nós consumimos, um terço vendemos ou trocamos na cidade mais próxima por outros gêneros de alimentos, e com o terço restante fazemos queijo e coalhada, e assim vamos sobrevivendo. Essa vaquinha é tudo para nós”. O mestre agradeceu a informação, pediu um copo d’água e contemplou o lugar por uns momentos. “A conversa está ótima, mas o sol logo vai se pôr. Seguiremos nosso caminho”, disse o mestre. Ele e seu discípulo se despediram e foram embora.

Estamos quase no último quadrimestre de 2022. Se você ainda está pensando no que poderia fazer de bom nesse ano, sinto dizer que você já perdeu o bonde

Depois de caminharem pouco mais de um quilômetro, o mestre ordenou ao seu discípulo, em tom grave: “Volte lá, puxe a vaquinha até a beira do precipício e a empurre para baixo”. Em pânico, o jovem ponderou ao mestre que a vaquinha era o único meio de sobrevivência daquela família. Mas, diante do silêncio do mestre – que ele havia aprendido a identificar como uma lembrança de que deveria obedecê-lo –, cumpriu a ordem. Empurrou a vaquinha morro abaixo, assistindo à sua trágica morte.

Por muitos anos, o jovem ficou com aquele episódio na memória. Não conseguia se perdoar. Tinha vivido diversos cenários hipotéticos e em todos eles aquela família acabava na desgraça por causa da morte da vaquinha. E, um dia, mais de 20 anos depois, ele se viu andando pela mesma vizinhança. Os dias de discípulo haviam acabado já havia algum tempo, mas as palavras do mestre voltaram fortes à sua mente: “Empurre a vaquinha no precipício”.

Seus olhos procuraram pela casa de madeira, talvez ainda mais destruída. Não acharam nada além de um sítio muito bem cuidado, com uma sede de muito bom gosto. “Certamente”, pensou, “a família teve de abandonar a terra e se mudar para alguma favela na cidade mais próxima. Isso se estiverem vivos”. Ele pretendia contar-lhes tudo e pedir perdão, mas a certeza de que não viviam mais ali era cada vez maior. Mesmo assim, decidiu pedir informações para ver se conseguia alguma pista do paradeiro da antiga e pobre família que ali vivera.

Assim que cruzou a porteira de entrada, foi recebido por um empregado, um rapaz simpático. Perguntou-lhe sobre uma família que tinha morado ali uns 20 anos atrás. “Continuam morando aqui”, respondeu rapidamente o empregado. Surpreso, ele perguntou ao moço se seria possível falar com algum deles. “É claro, vou chamar o patrãozinho”, respondeu. Minutos depois, um homem forte e bem apessoado apareceu e lhe apertou a mão. “Bom dia! Como posso ajudá-lo?”, disse o homem.

“Bom dia. Não sei se vai lembrar de mim, mas estive aqui há cerca de 20 anos com meu mestre. Naquela ocasião havia uma família muito pobre que morava numa casinha de madeira. O senhor sabe de quem estou falando?”, explicou o discípulo. “Puxa, estou me lembrando! Eu tinha apenas 15 anos, o senhor ficou calado o tempo todo, e aquele velhinho que veio junto ficou conversando com meu pai, fazendo perguntas. Quanto tempo!”, respondeu o homem. “Sim, sim, aquele era meu mestre. Ele já faleceu. E eu estava passando aqui por perto e me lembrei daquele dia. E que surpresa tive! Como vocês conseguiram sair de tamanha pobreza e transformar esse sítio nessa propriedade linda?”, perguntou o discípulo.

“A história não poderia ser mais estranha, ainda mais agora, com sua visita. No dia seguinte à visita de vocês, quando fui ordenhar a nossa vaquinha, não a encontrei. Depois de muito procurá-la, vi que ela tinha caído no precipício e morrido. Foi um desespero só. Meu pai quase teve um infarto, minha mãe só chorava. Mas, depois de dois dias, quando já não tínhamos mais o que comer, meu pai teve a ideia de reativar a oficina que ele tinha no galpão lá de baixo. Começou a restaurar alguns objetos velhos e enferrujados que tínhamos, e os levou para vender lá na feira de artesanato da cidade. Para encurtar a história, ele foi vendendo cada vez mais, nos ensinou como ajudá-lo, e passamos a restaurar objetos cada vez maiores e de valor. Depois de uns anos, resolvemos focar o negócio apenas em carros antigos, e hoje somos a maior firma de restauração do estado. Meu pai faleceu no ano passado, e eu nunca vou esquecer o que ele me disse pouco antes de morrer: filho, se aparecer mais uma vaquinha na sua vida, prometa que vai jogá-la no precipício.” Com lágrimas nos olhos, e com o coração aliviado da culpa que carregara por duas décadas, o discípulo agradeceu a conversa e se despediu.

Você precisa ver se tem uma vaquinha segurando sua vida. E ter uma vaquinha não significa necessariamente ser pobre ou viver muito mal. Tem muita gente que vive com conforto de sua vaquinha. O que a vaquinha simboliza é justamente a estagnação

Essa história me ajudou por diversas vezes na minha vida. Quem viu sua vaquinha estropiada lá embaixo, no fundo do precipício, sabe do que estou falando. E minha última vaquinha morreu faz apenas alguns meses. Foi um baque e tanto, e achamos – eu e minha esposa – que não haveria saída. Como diz um amigo nosso, olhamos para o precipício e já nos imaginamos rolando e batendo a cabeça em cada uma das pedras no caminho de descida. Mas Deus não nos deixou cair. E a falta da vaquinha nos fez criar coisas novas. E essas novidades vieram a dar frutos. E esses frutos são bons.

Eu sei que isso pode parecer papo de coach ou clichê de autoajuda, mas você precisa ver se tem uma vaquinha segurando sua vida. E ter uma vaquinha não significa necessariamente ser pobre ou viver muito mal. Tem muita gente que vive com conforto de sua vaquinha. O que a vaquinha simboliza é justamente a estagnação. Como a vida é movimento, é verbo, é ação, quem não mata a própria vaquinha acaba recebendo a visita do mestre algum dia. E, quando isso acontece, é “adeus vaquinha”. Melhor fazer você mesmo; pelo menos sai com algum planejamento.

Estamos quase no último quadrimestre de 2022. Se você ainda está pensando no que poderia fazer de bom nesse ano, sinto dizer que você já perdeu o bonde. Perdeu diversos bondes, um atrás do outro. Mas ainda dá tempo de planejar o assassinato da vaquinha e descobrir alguma movimentação nova para 2023. Com sorte, você a matará antes que o mestre apareça.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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