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Cobra Kai/Divulgação
Cobra Kai/Divulgação| Foto:

A grande verdade é que todos os problemas da humanidade contemporânea se concentraram em um só: bullying. Por um lado, as ditas minorias se sentem vítimas de uma suposta maioria algoz que consideram opressora, patriarcal, machista, homofóbica, racista e sei lá mais o quê, mas seu ativismo não é outra coisa senão a mesma prática do bullying mais descarado. Ou vai me dizer que quem tenta impor sua visão de mundo, querendo até determinar o que você deve sentir, pensar e dizer sobre certas coisas não pratica típico bullying?

Os exemplos são abundantes, mas cito um recente, contido na página do Senado Federal no Facebook. No último dia 17 de maio foi o Dia Internacional de Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans e Intersex. Em um post na citada rede social o Senado Federal compartilhou uma imagem “informando” que não se deve mais usar o termo homossexualismo e as expressões “opção sexual”, “o travesti” e “mudança de sexo” porque seriam ofensivos e discriminatórios. Homossexualismo seria ofensivo porque o sufixo “ismo” denotaria doença e anormalidade. Uma visita ao dicionário já desmente tamanha bobagem, mas suponho que quem pense assim deva considerar o cristianismo, islamismo e socialismo, por exemplo, como doenças. Ou há “ismos” mais “ismos” que certos “ismos”? Não é preciso de mais para se constatar que a justificativa dada é de uma insensatez impressionante. Já “opção sexual” não poderia porque, segundo o informe, ninguém optaria por sua orientação sexual. Como se “orientação” não supusesse também uma opção. Mais espantoso é considerar que uma orientação sexual não seria uma escolha, mas o gênero com que se nasce seria, daí porque teríamos de chamar um homem travesti de “a travesti” e se vier a realizar cirurgia de mudança de sexo a isso se chamaria “readequação de sexo e gênero”.

É óbvio que ao constatar essas obviedades não estou dizendo ser impossível alguém se sentir ofendido por esses termos e expressões conforme o contexto em que são ditos, mas que esse sentimento não condiz com os significados a que esses termos e expressões apontam genericamente e que a violência aí está, na verdade, em distorcê-los para adequá-los a um único significado de fundamento totalmente subjetivo: o do (res)sentimento de quem se diz ofendido. E caso o Estatuto da Diversidade Sexual, que hoje é um projeto de lei, venha a se tornar mandatório e eu insista em dizer “homossexualismo”, por exemplo, provavelmente serei acusado de cometer o que se pretende chamar de “crime de intolerância por orientação sexual ou de gênero”, segundo o parágrafo primeiro (que na verdade é único) do artigo 97 que dispõe que “incide na mesma pena [de 1 a 5 anos de reclusão] quem proferir discursos de ódio, afirmando a inferioridade, incitando à discriminação ou ofendendo coletividades de pessoas em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero”.

Qual seria o critério para se enquadrar um discurso como sendo “de ódio”? Segundo o Manual de Comunicação para ajudar no combate à LGBTIfobia, publicado pela Comissão de Direitos Humanos do Senado e informado na postagem referida, já sabemos qual será: o sentimento do ofendido e mais nada. Esse é o caminho para o governo tirânico do ressentimento das minorias, que se vende como “mais democracia” para subvertê-la na sua base. Porque é escancarada a pretensão atual de intimidar quem não aceite sentir e encarar a realidade à luz desse ressentimento, o que se tornará perseguição oficializada pelo Estado caso um estatuto desses vire lei. Bullying típico, cuspido e escarrado, com uso da força estatal, se preciso for, para obrigar você a sentir, pensar e a dizer conforme determinar o (res)sentimento alheio.

Além disso, não faltam exemplos de bullying praticado pelo ativismo de movimentos feministas e gayzistas, dentre outros, que são flagrantemente ofensivos à quem considerem ser seus inimigos, ainda que nenhuma agressão objetiva tenha sido feita para exigir defesa ou revide imediato. Quantas não foram as vezes em que objetos de culto religioso foram vilipendiados gratuitamente ou se forçaram situações embaraçosas, como em “paradas gays” ou “marcha das vadias”, apenas para “chocar a família tradicional”? Isso não é ação de quem se defende, mas de quem ataca. É comportamento típico de um “bully”; até pior, porque se sentem autorizados por se sentirem credores de uma “dívida histórica”. É apenas ressentimento e mais nada.

Não conheço nada melhor a retratar essa realidade do atual bullying que nos enforma do que o seriado Cobra Kai, recentemente lançado pelo Youtube. A história dá sequência aos filmes Karatê Kid dos anos 80 (não da bobagem refilmada com o Jackie Chan e o filho do Will Smith), passando-se na atualidade, com os personagens centrais do primeiro filme como protagonistas da série: Daniel Larusso e Johnny Lawrence. O primeiro se tornou um pai de família e empresário de sucesso, mas o segundo falhou em tudo, abandonou o filho, vivendo solitário, bêbado e mal tendo dinheiro para se sustentar. Até que ele decide reviver o dojo Cobra Kai, onde se criou na adolescência. Seus atletas são todos adolescentes nerds ou “freaks”, vítimas de bullying na escola e imersos nessa cultura politicamente correta que ensina a buscar proteção de alguém contra os agressores, não a ter a coragem de se defenderem e enfrentá-los se preciso for. As regras do Cobra Kai – ataque antes, ataque forte e sem piedade – acabam servindo não apenas para aprenderem a lutar karatê, mas como uma filosofia de vida que os leva de fato a ganharem respeito por si próprios.

O que Johnny e as 3 regras de Cobra Kai fizeram por aqueles jovens é o mesmo que o psicólogo Jordan Peterson, o fenômeno atual da “nova direita” cultural – e que surgiu no cenário mundial justamente por se opor à uma lei canadense semelhante ao nosso projeto de lei citado acima –, tem feito por milhares de pessoas com seus vídeos, cursos e especialmente com seu livro recém lançado no Brasil: 12 Regras para a vida – Um antídoto para o caos. Aliás, a primeira delas trata justamente sobre bullying, sobre como começar a mudar o jogo quando nos sentimos tão perdedores na vida. E a regra é simples: costas eretas, ombros para trás. Nas palavras de Jordan: “Levantar a cabeça, manter as costas eretas e os ombros para trás significa aceitar a terrível responsabilidade da vida com os olhos bem abertos. (…) Pare de se curvar e ficar se arrastando. Fale o que pensa. Apresente seus desejos como se tivesse direito a eles – pelo menos os mesmos direitos que os outros. Caminhe de cabeça erguida e olhe firmemente para frente. Ouse ser perigoso.”

É evidente que num contexto politicamente correto as meras palavras “ataque antes, ataque forte e sem piedade” ou “ouse ser perigoso” são escandalosas. Porque todo o politicamente correto se resume a isso: palavras desconectadas da realidade, ofensivas ou “corretas” em si, como as indicadas no post do Senado Federal. Essa desconexão é magistralmente retratada no seriado. Johnny, que ficou parado nos anos 80 em todos os sentidos, não só não se comove com os sofrimentos de seus alunos que são chamados disso e daquilo, como dá apelidos até piores a eles. Quando um o contesta dizendo que ele não deveria zombar da aparência física de alguém, sua postura e resposta foi exorcizante dessa realidade “fake” criada pelo politicamente correto e que controlava aqueles meninos: “Talvez seja o que te ensinam na escola, mas no mundo real você não pode esperar que as pessoas façam o que deveriam fazer. Se não suporta que zombem de você, como irá aguentar uma cotovelada nos dentes? (…) Se você quer ser algo mais do que um nerd com cicatriz no lábio você tem de virar a página. Faça uma tatuagem na boca. (…) Desde que vocês entraram em Cobra Kai eu tenho sido duro com vocês, dado apelidos, humilhei vocês, bati em alguns de vocês e por tudo isso eu não peço desculpas. Cobra Kai tem a ver com força. Se você não é forte por dentro, não poderá ser forte por fora. E nesse momento vocês estão todos fracos. E eu sei disso porque fui como vocês. Não tinha amigos, era o cara esquisito. Como uma cobra tive de perder minha pele de fracassado para encontrar meu poder verdadeiro. E vocês também farão isso. Não importa se você é um perdedor, um nerd ou um esquisito. O que importa é vocês se tornarem durões”.

E começaram a se tornar mesmo. O menino com cicatriz da cirurgia de lábio leporino, por exemplo, decidiu “virar a página” e apareceu com um cabelo de moicano pintado de azul e uma atitude de quem não levaria mais desaforo para casa. Agora, veja que curioso e revelador. Quando vemos muitas feministas ativistas por aí deixando crescer pelos no sovaco, não levando cantadas para casa, orgulhosas de serem chamadas de vadias, não foi exatamente nisso que se tornaram, mulheres “duronas”? O que é o tal do “empoderamento”, no fim das contas, senão isso? Por isso que digo que no dojo Cobra Kai conservadores e progressistas acabam se encontrando, ainda que a contragosto e como adversários ou inimigos, porque se de um lado temos as minorias progressistas atuando na base do “atacar antes, atacar forte e sem piedade”, do outro lado temos o destemor de quem, como Johnny, não se abala com a chantagem emocional politicamente correta, sendo por isso mesmo admiradas por muitos conservadores menos pelo que fazem do que pelo que falam e como falam, como Donald Trump, Nigel Farage e Jair Bolsonaro, para ficar em exemplos próximos e muito imitados, especialmente nas redes sociais.

O que é maravilhoso no seriado – com potencial curativo, eu diria – é a consequência concreta desse “empoderamento” dos supostos mais fracos e da reação destemida dos “politicamente incorretos”: o endurecimento do coração. A primeira temporada termina com os treinados na filosofia Cobra Kai agindo deslealmente num torneio de karatê, com as regras de atacar antes, atacar forte e sem piedade se tornando uma só: o que importa é vencer, o que ali é o equivalente ao “lacrar” ou “mitar” nas redes sociais. Como respondeu o discípulo vencedor à Johnny, quando este lhe disse que não poderia vencer jogando sujo: “Não há nada de sujo em vencer, Sensei, você me ensinou isso.” A perplexidade de Johnny diante disso, diante do resultado concreto de seu ensinamento, é magistralmente interpretada por William Zabka. No fim, Johnny tem de lidar com a constatação inegável de que as regras de Cobra Kai eram, no mínimo, insuficientes, se é que não estariam erradas.

Como a temporada terminou deixando isso em suspenso, saímos da série com um Johnny ainda perplexo, reflexivo, então, não sabemos se sairá dessa experiência mais maduro, consciente de que na realidade concreta da vida regras e princípios até orientam, dão o norte, mas nunca podem ser aplicados diretamente, como ele pretendia, sem um mínimo de mediação daquela sabedoria prática que os antigos chamavam de Prudência. O seriado todo é sobre isso, no fim das contas, e ao recontar a história de Karatê Kid pelo olhar de Johnny, obriga o espectador que está mais do que habituado a pensar em Daniel como sendo o herói e Johnny como o vilão à não mais enxergar ambos dessa maneira. O modo como o seriado construiu sua história abarcando as visões que os protagonistas tinham um do outro ganhou sua culminação no episódio em que foram obrigados a passar o dia juntos e foram descobrindo que não sabiam quase nada um do outro. Fica evidente ali que tinham mais em comum do que imaginavam e que poderiam ter sido, e ainda podem vir a ser, grandes amigos.

A rivalidade entre ambos permanece, claro, mas a partir dali o espectador já não consegue mais tomar partido de um ou de outro, como se um representasse o Bem e o outro o Mal. Existe, sim, a luta entre o Bem e Mal, mas na alma de cada um deles. Passamos a torcer para que ambos não se deixem levar por seu lado maldoso, mas que antes de saírem julgando o outro ou aplicando regras abstratas a realidades muito mais complexas do que elas, prestem atenção em mais do que seus preconceitos, justificados ou não, e se compreendam melhor. Se disso sair uma regra do tipo “tenha piedade”, talvez seja bom e até necessário, mas o que importa aqui é tomar consciência de que regras descarnadas da realidade concreta da vida humana só se tornam verdadeiro caminho para a virtude quando reencarnadas com prudência nessa mesma realidade.

No seriado a virtude da Prudência descarnada e tornada uma regra de vida está no que Daniel Larusso chama de “equilíbrio”, que em certa medida é o equivalente oriental da prudência ocidental. Daniel ensina seu discípulo, que é filho de Johnny, que quando sua raiva, seus maus sentimentos, seu lado sombrio, está lhe puxando “para baixo” ele precisaria contrabalançar isso com seu lado “bom” e assim encontraria o “equilíbrio” na vida. Mas se as técnicas de concentração, de meditação, de treino mostradas no seriado servem para encontrar um equilíbrio emocional, isso ainda não é o equilíbrio vital, no sentido da virtude da prudência, pois isso não é algo que se conquista apenas com controle mental e emocional, mas exige a integração da personalidade com muito mais do que apenas maus sentimentos. No caso do discípulo de Daniel, o equilíbrio nesse sentido só será possível quando ele começar a resolver interiormente sua relação ressentida com o pai, Johnny, o que nos devolve à regra que podemos tirar de todo esse seriado: tenha piedade.

Citei Jordan Peterson acima e não foi apenas pela analogia óbvia de suas 12 regras para a vida com as 3 de Cobra Kai, mas porque ao conhecer Peterson pelos seus livros, palestras, aulas e entrevistas, percebo um sujeito verdadeiramente prudente, que embora seja enquadrado “à direita” do tatame mundial e traga suas regras como antídoto para o caos da vida, não constrói em torno desta um muro de proteção ideológica contra esse caos, pelo contrário. Em suas palavras, valendo-se do símbolo da serpente no paraíso bíblico: “Afinal, já vimos o inimigo, e somos ele. A serpente habita nossa alma. (…) A pior de todas as serpentes possíveis é a eterna inclinação humana para o mal. A pior de todas as serpentes possíveis é psicológica, espiritual, pessoal e interna. Muro algum, não importa sua altura, vai mantê-la afastada. Mesmo se o castelo fosse espesso o suficiente, em princípio, para manter tudo de ruim do lado de fora, ela apareceria imediatamente do lado de dentro novamente. Como o grande escritor russo Aleksander Solzhenitsyn enfatizava, a linha divisória entre bem e mal passa pelo coração de cada ser humano.”

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