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A ministra Carmen Lúcia distorceu a gramática na tentativa de ressaltar que os “discursos de ódio”, quando voltados contra mulheres, seriam piores porque carregados de misoginia. Chamou de “discurso de ódia”.
Calma, respira. Parou de rir? Pois é, não tem como ler ou escutar isso e não achar que é piada. O que significa dizer que a própria ministra acabou por distorcer seu argumento. A ferida real que pretendia combater – a violência contra mulheres – ficou menor, até ignorada, diante do ridículo linguístico. É o que acontece quando maltratamos as palavras: elas se vingam, roubando a força daquilo que queríamos dizer. Quando as respeitamos, amplificam nossa voz. Quando as violentamos, elas nos traem.
Por outro lado, as palavras também são criaturas vivas, mutantes, que podem trocar de pele conforme atravessamos o tempo. Mas elas têm seu próprio relógio, movem-se como placas tectônicas: são capazes de criar montanhas e abismos, mas devagar, quase de forma imperceptível. É preciso escavar arqueologicamente para descobrir seus sentidos originais ou antigos.
A própria ministra acabou por distorcer seu argumento. A ferida real que pretendia combater – a violência contra mulheres – ficou menor, até ignorada, diante do ridículo linguístico
Penso no trabalho, por exemplo, uma palavra que nasceu como tripalium, ou seja, um instrumento de tortura romano. Hoje, até mantemos a noção do sofrimento, não com conotação de tortura, mas do seu oposto, no sentido de o trabalho ser um meio de autorrealização na vida. A parte do sofrimento se tornou até um nicho de mercado para coaches anestesistas dessa dor inevitável com palestras motivacionais. O tripalium só se revela nos escombros do chamado burnout.
O curador sofreu mudança ainda maior. Nasceu do latim cura, cuidado com a alma. O curador era o que zelava, o que tratava com carinho sagrado. Era ofício de proximidade e ternura. Hoje curamos playlists e feeds. O cuidado virou seleção de conteúdo, a alma virou algoritmo. Curadores não curam mais nada, apenas escolhem o que acham que merece ser visto.
O sincero também se tornou irreconhecível. A palavra nasceu bonita, sine cera, sem cera. Era o selo dos escultores honestos que não escondiam rachaduras no mármore com cera derretida. Sinceridade era mostrar as falhas com dignidade. Hoje? “Vou ser sincero” virou prelúdio de grosseria. A sinceridade foi sequestrada pela brutalidade, e agora ser sincero é ter licença para ferir. Perdemos a cera e ganhamos o martelo.
A influência também anda mudando de endereço. Antes morava nos salões literários, nas cátedras, nos sussurros sedutores de quem detinha autoridade, moldando as ideias de terceiros. Era um poder sutil, quase invisível, como a lua puxando as marés. Hoje virou profissão com CNPJ: influenciador. O verbo fossilizou em substantivo, e o que era processo virou produto. Vendemos influência por clique, medimos seu peso em seguidores. A lua virou outdoor.
Aliás, mesmo que você não seja um influenciador, acaba sendo um caso tenha um perfil com número razoável de seguidores nas redes sociais. Mais ainda se depender disso para divulgar seu trabalho, como é meu caso, aliás, que quase só as uso para isso. É o que basta para ser confundido com um influencer. É a parte tripalium do meu trabalho, infelizmente.
E o que dizer da tolerância? Essa talvez seja a metamorfose mais cruel. Nasceu como virtude iluminista, farol da civilização. Voltaire a defendia com unhas e dentes, como o direito sagrado de discordar sem destruir. Mas a palavra virou do avesso, literalmente: a tolerância virou intolerante. Hoje, em nome dela, silenciamos vozes, criamos listas de proscritos, patrulhamos pensamentos.
Talvez “ódia” seja normalizado no futuro. Em breve, também falaremos de “afetoa”, “coraçãa” e até “paza”, por que não?
A palavra que nasceu para proteger a diferença agora é usada como porrete contra quem ousar pensar diferente dos que se acham diferentes. O voto da ministra, aliás, é invenção típica desta tolerância intolerante, pois embora tenha dito viver “aterrorizada com a censura dos últimos tempos no Brasil”, foi a favor da censura no próprio voto, dado que essa é uma das consequências lógicas da sua tese defendida.
Mas, enfim, vai saber se a ministra não está sendo pioneira? Talvez “ódia” seja normalizado no futuro. Em breve, também falaremos de “afetoa”, “coraçãa” e até “paza”, por que não? Se duvidar, o STF ainda criará um novo dicionário oficial, com verbetes de validade vinculante, com a recusa de sua utilização configurando crime de ódia linguística. Virão, então, os fiscais do verbo, prontos para confiscar adjetivos desobedientes e prender conjugações que ousem discordar. No fim, a ministra poderá dormir tranquila, não mais aterrorizada com a censura dos últimos tempos no Brasil.





