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Carta ao meu eu de 17 anos
| Foto: Bruno Germany/Pixabay

Curitiba, 12 de abril de 2023

Oi, piá,

Quem dera pudesse realmente lhe enviar esta carta. Tenho até o dia, o lugar e o momento exato em que gostaria que você a recebesse. Chegaria pelas mãos do Jurandir, o psicólogo do colégio (desculpe especificar, mas é que outros nos lerão e terei de explicar algumas coisas óbvias entre nós). Chegaria logo depois do seu teste vocacional que a escola obrigou os alunos do terceirão a fazer. Mais especificamente quando você estiver voltando para a sala, entre o quarto e quinto degraus do último lance da escadaria emborrachada em vermelho que termina quase defronte a porta do 3A. Jurandir gritaria, pedindo para você esperar e lhe entregaria a carta. Você a olharia estupefato, mais ainda quando visse que o remetente era você mesmo – eu, no caso.

Seria nesse momento porque, bem, você sabe, você está parando mesmo entre o quarto e quinto degraus. Está aí agora, virando o tronco e mirando o pátio desnudado, os corredores vazios, com o eco do ruído da sola do tênis no piso emborrachado parecendo dizer alguma coisa, chamando sua atenção para algo que você não sabe o que é, mas sabe que está lá, está aí. Você não sabe colocar em palavras ainda. Está desconfiando que tudo aquilo que parece tão fundamental para a vida, o vestibular, o curso universitário, a futura profissão, carreira etc., nada disso lhe convence como sendo tão importante assim. Você agora sabe, sem saber como sabe, que o mais importante ainda não encontrou ou que, pelo menos, não está aí nessas decisões a serem tomadas. Por isso está se perguntando que diferença faria escolher Direito ou Jornalismo ou Publicidade ou nada?

Foi nesse momento que caiu sua ficha: “Vou fazer Direito. Porque no fim das contas é pra arrumar um trabalho, que é pra ter dinheiro, que é pra poder pagar as contas e viver... Melhor ser Direito, o pai vai se aposentar e abrir escritório de advocacia e não tem curso melhor para quem quiser fazer concurso público também. Farei Direito, resolvido”. Está vendo como é você mesmo que está escrevendo esta carta? Quem mais saberia disso, a não ser eu? Não, não falarei do futuro, se você acertou, se isso deu certo. Esta carta não é sobre o que acontecerá, seja algo de bom ou ruim. Não, ela é sobre esse “mais importante” que está lhe chamando, mas você ainda não sabe que é um chamado, muito menos consegue colocar em palavras o que está percebendo, nem tem noção do quão importante isso seria.

Você agora sabe, sem saber como sabe, que o mais importante ainda não encontrou ou que, pelo menos, não está aí nessas decisões a serem tomadas

Lembra quando, no ano anterior, num dia em que você se sentou na última fila de carteiras, encostada nas janelas da sala de aula e, sem querer, pegou-se admirando a paisagem do lado de fora, os telhados espalhando-se no horizonte como pedaços de barras de chocolate em meio ao verde das árvores bailando ao vento, com algumas poucas chaminés esfumaçando, sua imaginação a voar por sobre as casas a observar o cotidiano de tantos? Ali também algo lhe chamou, lembra? E você não sabia o que era também. Quero lhe ajudar a expressar isso. Leia isso, é o início de Terra dos Homens, de Saint-Exupèry:

“Trago sempre nos olhos a imagem de minha primeira noite de voo, na Argentina – uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície. Cada uma dessas luzes marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe brilhavam esses fogos no campo, como que pedindo sustento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre essas estrelas vivas, tantas janelas fechadas, tantas estrelas extintas, tantos homens adormecidos... É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura.”

É a esse esforço que você está sendo chamado. Sua consciência está desperta, sua estrela está viva, mas você já pressente o risco da extinção, do adormecer, do fechar as janelas... É... Eu sei, falei que não ia falar do futuro, mas... Sim, você está conseguindo. As janelas permanecem abertas, diria até escancaradas. É de uma delas que escrevo, é de uma delas que você me lê, a do seu olhar. Algumas pessoas já o descobriram assim, lembra do que disse o professor Marquinhos no ano passado? “Você brilha com os olhos na minha aula!” Eis tua alma viva. E é com a ajuda de caras como Exupèry que você assim manterá a chama acesa, dentre outros que você já conhece e já “usa” para isso, embora não saiba que é isso que faz. Cito um: Led Zeppelin.

Não entendeu? Tem certeza? Quantas noites escutando The Rain Song, cara? Rs, ela conversa demais com o trecho do Exupèry, percebe? Não precisa responder, já está dizendo com o olhar. Sorrindo por ele, aliás. Está lembrando da viagem para aquele campeonato de handebol em Campo Mourão, não é? Você praticamente não dormiu, ficou lá rebobinando a fita cassete no walkman para escutá-la de novo e de novo e de novo e de novo... Pois então, era você tentando se comunicar com essa luz que brilha também em você. Era você tentando se comunicar com você mesmo. Era isso que fazia escutando essa música, quando contemplava os telhados da cidade, também agora com o olhar perdido pelo pátio deserto do colégio e aqui, escrevendo escutando a mesma música...

É por isso que gostaria que essa carta chegasse neste instante, não em outro: porque você pode não fazer a menor ideia do que ser e fazer no futuro, mas o mais importante está aí na sua frente, no aparente vazio e silêncio desse pátio. Porque ele não está vazio no teu olhar a brilhar o que incendeia no meu coração, o tal do fogo que arde sem se ver. Porque o que recobre os telhados preenche as casas e as escolas. E com The Rain Song teu coração transbordava em chamas naquela viagem, nas inúmeras noites adormecendo a escutando, assim como agora ao escrever como quem chove.

Está difícil me conter, não lhe contar tanta coisa que acontecerá... Mas resistirei, bancarei apenas o “mestre dos magos”, deixando uma mensagem nada cifrada, uma pérola da tradição judaica que, tenho certeza, você entenderá. Se não agora, em algum amanhã: “Um estrangeiro visitou um sábio rabino e perguntou: ‘Mestre, o que é melhor, a bondade ou a inteligência?’ O rabino respondeu: ‘Claro que a inteligência, meu filho, pois ela é o centro da vida’. Houve um momento de silêncio. O rabino parecia pensar. E, antes que o estrangeiro agradecesse e fosse embora, o rabino completou: ‘Mas, se você só tem a inteligência, sem a bondade, é como se você tivesse a chave do quarto que está no centro da sua casa, mas tivesse perdido a chave da porta da entrada’”.

Você pode não fazer a menor ideia do que ser e fazer no futuro, mas o mais importante está aí na sua frente, no aparente vazio e silêncio desse pátio

Fique a meditar no que Exupèry disse... no que o rabino respondeu depois de pensar... no que a música canta: “É a primavera do meu amor / A segunda estação que vou conhecer / Você é a luz do sol no meu crescer / Tão pouco calor havia antes sentido / Não é difícil me ver brilhando / Eu vi o fogo que cresceu tão lentamente”... Mas cresceu, graças a Deus. Está escutando? Mesmo, de verdade? “É para ti que dou esta canção / Não é tão difícil de reconhecer / Essas coisas são claras para todos de tempos em tempos”.

Agora é noite aqui, miro as janelas acesas dos prédios que avisto da minha, igualmente iluminada. Alguém nos vê? Alguém nos imagina? É preciso a gente tentar se reunir... É por isso que decidi escrever cartas. Não porque eu tenha muito a dizer. Não, não se trata disso. Tenho pouco, na verdade. Mas talvez esse pouco faça sentido também para outros, ao menos o suficiente para reacender ou manter acesa a mesma chama. Se consegui?

É hora de voltar para a sala de aula, piá.

Fique com Deus (ficará ;)),

Eu

P.S.: OK, mais uma piscadinha do futuro: será possível escutar infinitamente The Rain Song sem precisar rebobinar a fita.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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