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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Liberdade de expressão

A distopia em baldes de censura

Alexandre de Moraes censura
Quando o nosso STF encontra "Fahrenheit 451". Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Whisk)

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Se você está minimamente informado, é impossível não ficar com a impressão de que o futuro desandou em surrealismo, com o presente empilhando absurdos.

Só com o que tivemos esta semana seria suficiente para se concluir isso, com a condenação à prisão de comediante por causa de piadas e a censura de perfis de terceiros em redes sociais para punir uma deputada federal, com a determinação conjunta de identificação de quem lhe tenha doado dinheiro via Pix.

Se for preciso explicar o porquê de isso tudo ser um absurdo, então aquele futuro está mais próximo do que parece. É a palavra “distopia” que parece ser o termo que melhor expressa, e com precisão, esta realidade atual. Para entendê-la direito, precisamos falar antes da sua irmã mais velha, a utopia.

Este termo foi cunhado por São Thomas More, no seu livro justamente chamado Utopia, inspirado na República, de Platão, em que descreve como seria uma sociedade perfeita e, por isso mesmo, impossível de acontecer na realidade. Daí porque o lugar dessa sociedade seria uma utopia, ou seja, um “não lugar” (ou-topos, em grego).

O futuro desandou em surrealismo, com o presente empilhando absurdos

A ideia de More era contrastar essa idealidade com o estado corrompido de coisas da Inglaterra de sua época, servindo o ideal como um farol e um chamado para a melhora da sociedade, ainda que fosse impossível chegar ao estado de perfeição imaginado.

Cerca de um século depois, Francis Bacon escrevia uma nova utopia, chamada de Nova Atlântida, que restou incompleta. Entretanto, até onde foi com a história, Bacon não tratava a nova Atlântida como um “não lugar” inatingível, com a ciência e o conhecimento sendo capazes de realizar essa utopia.

Aliás, muito do que entendemos por Modernidade não deixa de ser precisamente uma utopia da razão e da ciência a nos conduzir em um desejado progresso contínuo de melhoria. Ou seja, o sentido de “utopia” passou a ser associado não ao de um “não lugar”, mas ao de um “lugar ideal”. 

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E quando o ideal “dá ruim”, como diria a gíria atual? É aí que vem a distopia. Foi no século 19 que John Stuart Mill cunhou este termo em um discurso ao Parlamento britânico, em que disse sobre adversários: “O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável”.

A literatura, então, começou a refletir sobre um futuro que não seria aquele lugar ideal, mas o contrário disso. Jonathan Swift, em As Viagens de Gulliver, já fazia uma sátira mordaz de sua época, mostrando a falha na tentativa de melhorar o ser humano e a limitada utilidade prática da ciência em contraste com suas grandes ideias. O livro citado de Bacon é satirizado, inclusive.

H.G. Wells, em A Máquina do Tempo, enviou seu cientista ao futuro em busca da utopia, apenas para encontrar a desilusão. O Senhor do Mundo, de Robert Hugh Benson, lançado em 1908, previu uma grande guerra e o advento de um jovem salvador do mundo, cultuado numa espécie de religião global, fazendo todos caminharem rumo ao autoritarismo de um governo mundial, onde as liberdades individuais são suprimidas por meio da imposição de regras de conduta e de uma nova moralidade. Sim, é um livro de ficção, não de história contemporânea.

O século 20, com suas guerras mundiais, revoluções e morticínios, foi o grande catalisador dessa mudança de perspectiva em que as utopias, antes tão louvadas, não podiam mais negar ou esconder seus sérios problemas e frutos podres. A distopia estava mais próxima da realidade.

Nossa distopia particular desta semana encontra espelho em “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury

Foi nesse contexto que Evgeny Zamiatin, em 1920, escreveu Nós, prevendo o futuro totalitário a partir do que via na União Soviética. Sua obra, por sua vez, inspirou diretamente Aldous Huxley com Admirável Mundo Novo e George Orwell com seu icônico 1984. A partir daí, a avalanche distópica só cresceu como gênero literário.

Laranja Mecânica, V de Vingança, Clube da Luta e, mais recentemente, Black Mirror e The Walking Dead, cada um à sua maneira, continuam a explorar os pesadelos do controle, da alienação, da desorientação vital e da tentativa de reconstrução fracassada de uma modernidade que, espiritualmente, agoniza.

Mas a nossa distopia particular desta semana encontra espelho em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Quer saber as cenas dos próximos capítulos da censura? Pois leia a obra. Principalmente para descobrir o quanto a literatura é indispensável em situações assim. Não para vencer as distopias, mas para que elas não nos vençam na alma.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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