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“Idiota” vem do grego antigo idiotes. Lá, não significava alguém tolo. Era simplesmente o cidadão comum, o “indivíduo privado”, que não ocupava cargos públicos e não participava ativamente da vida política. Para os gregos, quem não se engajava com os assuntos da pólis estava sendo egoísta, recusando o dever cívico em nome de seus próprios interesses. O idiotes era, em certo sentido, um desertor da cidadania.
Com o tempo, no entanto, a palavra mudou, passando a ser associada à ignorância intelectual. O idiota seria aquele desprovido do saber erudito, um simplório, até que a palavra deslizou definitivamente para o reino do insulto: é o “imbecil”, o “estúpido”, o sujeito que, por incompetência ou ingenuidade, não entende como o mundo realmente funciona.
Mas há um tipo especial de idiota que me interessa aqui. É o trouxa por virtude. Ou seja, aquele que simplesmente escolhe permanecer bom, mesmo sabendo que será enganado. É o sujeito que empresta dinheiro pela décima vez ao mesmo amigo caloteiro, não por burrice, mas porque prefere perder uns trocados a perder a fé nas pessoas.
Talvez ser feito de bobo seja o preço de manter algo que o cinismo não pode comprar: a leveza de não viver calculando, a simplicidade de não transformar cada interação em uma transação
Nunca conheci um desses idiotas de perto, mas todo mundo sabe histórias de algum. Uma senhora de idade, viúva há tempos, que compra rifas que nunca existiram, dá dinheiro para quem pede dizendo que é pra comida (mesmo aos que claramente mentiam), acredita em todas as histórias tristes e ajuda com o que pode, por exemplo. Se questionada: “Não percebe que estão te enganando?”, essa pessoa apenas sorri, como se no sorriso dissesse: “Filho, eu sei. Mas prefiro errar fazendo o bem. No fim das contas, o que eu perco? Uns reais? E o que eu ganho? A paz de não ter virado uma velha amarga”.
O príncipe Míchkin, de O Idiota, de Dostoiévski, é o patrono literário desses idiotas. Sua bondade não é estratégica nem heroica, é quase involuntária, como respirar. Ele vê o melhor nas pessoas não por cálculo, mas porque seus olhos simplesmente não foram treinados para a desconfiança.
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O mundo moderno tem horror a essa espécie. “Não seja trouxa” virou mandamento. A esperteza virou virtude suprema. Mas o que acontece quando todos se tornam espertos? Quando ninguém mais confia em ninguém? Quando cada gesto de bondade é analisado em busca de segundas intenções?
Os idiotas de que falo são os últimos resistentes num mundo conduzido pela desconfiança. Aqueles que ainda devolvem carteiras perdidas com o dinheiro intacto ou que param no sinal para dar informação a alguém, mesmo atrasado. A criança que divide o lanche sem calcular se vai receber algo em troca. O idoso que ainda acredita na palavra dada.
“Mas eles são feitos de bobos!”, dirão os práticos. E daí? Talvez ser feito de bobo seja o preço de manter algo que o cinismo não pode comprar: a leveza de não viver calculando, a simplicidade de não transformar cada interação em uma transação, a liberdade de não carregar uma armadura contra o mundo.
Esses idiotas apanham da vida. Mas dormem sem rancor. Acordam sem paranoia. Vivem sem a exaustão de quem precisa estar sempre em guarda
Há uma sabedoria paradoxal nessa idiotice, que poderia virar um mandamento: “Mais vale ser feito de trouxa dez vezes do que perder uma chance de ajudar alguém que realmente precisa”. É a matemática inversa da bondade: aceitar muitos prejuízos pequenos para não correr o risco de um prejuízo imenso: o de se tornar alguém incapaz de confiar.
Sim, esses idiotas apanham da vida. São passados para trás, enganados, usados. Mas há algo curiosamente intacto neles, uma espécie de virgindade existencial que os espertos perderam há muito tempo. Eles dormem sem rancor. Acordam sem paranoia. Vivem sem a exaustão de quem precisa estar sempre em guarda.
O mais irônico? No fim, são eles que costumam ter os amigos mais leais, os amores mais verdadeiros, as memórias mais doces. Porque no meio de tantos que se aproveitaram, sempre aparecem alguns que reconhecem o tesouro raro de alguém genuinamente bom. E esses poucos valem por multidões. Quem me dera ser um desses idiotas.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




