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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Retórica bolsonarista

O martírio de Bolsonaro é mais do que um meme?

Jair Bolsonaro
(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil / arquivo)

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É provável que o leitor tenha entendido o termo “meme” no título com sentido jocoso, como uma piada típica de internet usando uma imagem com pouco ou nenhum texto expressando humor, ironia, sarcasmo. É o uso mais comum de um meme, de fato. Mas não o único.

A origem do termo é de 1976, criado por Richard Dawkins em seu livro O Gene Egoísta, como um análogo para a memória do que o gene é na genética. Ou seja, uma unidade mínima de transmissão - no caso, cultural, ou seja, uma ideia, comportamento, frase ou imagem - que se replica e se espalha entre as pessoas, tal como os genes se replicam na transmissão hereditária. Isso gerou até um estudo formal, chamado de memética. É sério, existe.

Logo, um meme pode perfeitamente não ser uma piada, como, por exemplo, é a foto postada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro de seu intestino exposto pela cirurgia no abdômen a que recentemente teve de se submeter. Nesta “unidade mínima” se comunica muito mais do que parece, não apenas remetendo à cirurgia, mas ao atentado sofrido nas eleições de 2018 e ao que vem padecendo desde então, com sequelas exigindo intervenções cirúrgicas com certa frequência.

Teria sido apenas uma forma de “desabafo” desse sofrimento? Uma resposta às acusações de que a facada sofrida teria sido “fake”? Ou trataria-se de mais uma imagem a tentar consolidar o símbolo do “mito”, agregando nele o martírio pelo qual passa, como apontou e analisou Eduardo de Matos Alencar, em artigo especial para esta Gazeta do Povo? Eduardo não perde tempo com reações de repulsa à imagem, mas, refletindo sobre o meme, aprofunda seu possível sentido e a intenção por trás da postagem.

Trata do significado do bode expiatório, fazendo um paralelo de Bolsonaro com a história de William Wallace, o famoso escocês retratado no filme Coração Valente, de Mel Gibson, para concluir que o resultado final da perseguição dos algozes do ex-presidente (STF, PT etc) pode ser o contrário do que desejam, consolidando um mito que se torna até mais forte depois de morto. É plausível.

Analisando como um símbolo, a foto de Bolsonaro parece tentar ser uma imagem de Seppuku, mais conhecido no Ocidente como “haraquiri”, o famoso suicídio de samurais por esventramento, algo extremamente doloroso e que leva lentamente à morte (por incrível que pareça). As pinturas de Seppuku retratam a coragem, o autocontrole e a forte determinação característicos de um samurai, que vivem e morrem por seu código de honra, o bushido. Mas antes de ser um símbolo a foto é um meme, que tem uma dinâmica de replicação diferente, espalhando-se antes dos seus possíveis significados se estabilizarem.

Como um vírus novo que sofre mutações antes de ser compreendido e, a partir daí, analisado e tratado mais pelo que mudou do que por sua origem. Ou seja, o sentido original decorrente da intenção da postagem de Bolsonaro pode se modificar radicalmente no processo de replicação, ganhando significado diverso, até contrário do pretendido, como, por exemplo, tornar-se a imagem de um homem desesperado por atenção.

Paulo Polzonoff, em sua coluna tentando entender a razão para esta postagem, citou duas mutações já ocorridas, jocosas, transformando o suposto símbolo em piada. Um tinha transformado o abdômen e as vísceras em um jogo de lego, o outro transformou a imagem na capa do famoso brinquedo “Operando”. Não parecem replicações que “ajudem na causa bolsonarista”.

É preciso também levar em conta que o tempo dentro das redes sociais joga contra a consolidação de símbolos. Tudo passa rápido, quase nada perdura. Ou seja, quase tudo acaba sendo provisório, evanescente, esquecido, até os piores “cancelamentos”. E os memes que duram, conquistando vida longa, costumam permanecer apenas como piada. Mais fácil o meme do lego ser replicado daqui por diante do que a foto do Bolsonaro.

Então, para que um meme se torne um símbolo (ou parte de um) de verdade terá de, além de “furar a bolha” desse esquecimento programado, escapar desse destino de se tornar apenas uma piada ou figurinha de whatsapp. Há outro ponto relevante. Nas redes sociais, sabemos que causar escândalo tem sido a forma mais eficiente de conseguir atenção e alcance. A equipe por trás de Bolsonaro sempre soube fazer isso muito bem.

Entretanto, de “choque” em “choque”, o escândalo vai se normalizando, as pessoas se tornando indiferentes e para se conseguir o mesmo efeito é preciso aumentar a “dose” do escândalo para “acordar as pessoas”. A foto não deixa de ser essa dose aumentada.

Enfim, antes Bolsonaro se utilizava de uma retórica inflamada, que abandonou faz tempo, quase certamente para buscar fazer as composições políticas necessárias para tentar livrar-se das ou anular as condenações judiciais que sofreu.

O efeito colateral é a perda na capacidade de engajamento (e manutenção do encantamento mítico). A foto de suas vísceras, assim, significa também uma retomada dessa retórica, por outros meios. Funcionará? Não sei, mas me parece sinalizar mais uma escassez de recursos retóricos do que uso estratégico de um deles.

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