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Frame do filme Nem Tudo Se Desfaz.
Frame do filme Nem Tudo Se Desfaz.| Foto: Reprodução/YouTube

“Para Freyre, existiria uma capacidade genuinamente brasileira de produzir harmonia a partir de pares opostos por ação do exagero, do conflito e do desejo.”

Eis um trecho narrado no documentário Nem Tudo se Desfaz, de Josias Teófilo, disponível em várias plataformas de streaming, como a Lumine, onde assisti. Freyre ali é Gilberto Freyre e se você imediatamente associou ao par de opostos atual, simbolizados por Lula e Bolsonaro, com todo o exagero, conflito e desejo que temos visto, o que nos faz quase que desesperadamente aceitar, se surgir, qualquer possibilidade de harmonia real, então pode genuinamente entender essa nossa capacidade apontada pelo grande sociólogo.

Nem Tudo se Desfaz é um filme obrigatório para entender o que estamos vivendo. Embora conte a história desde 2013, com o início das imensas manifestações populares que só cresceram de tamanho desde então, terminando com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, por fazer uma conexão de sentido com o nascimento da chamada Nova República, nascida com a Constituição de 1988, permite compreender os fatos não apenas por suas causas específicas, mas também num quadro histórico muito maior.

Daí a importância do pensamento de Freyre, enquadrando as interpretações de todos os entrevistados num todo maior que lhes dá melhor contexto e proporção, especialmente à tentação de tudo explicar pela teoria mimética de René Girard, tão certeira quanto generalizante demais, e, neste sentido, incapaz de explicar a contento a capacidade genuinamente brasileira de produzir harmonia entre pares aparentemente inconciliáveis.

O filme dedica alguns minutos preciosos ao pensamento de Freyre, especificamente o contido no livro Ordem e Progresso, que resume assim: “Ordem e progresso também seriam opostos e antagonistas. De um lado, a ordem prefere conservar; de outro, o progresso quer revolucionar. Da disputa entre ordem e progresso surgiriam os grandes líderes brasileiros. Esses líderes seriam os revolucionários conservadores, capazes de realizar progressos técnicos e sociais dentro do máximo de ordem política. O Brasil seria o resultado de vários pequenos movimentos revolucionários, com uma capacidade de harmonização genuinamente brasileira, esses movimentos seriam progressivamente acomodados pelas estruturas mais antigas.”

Se nos distanciarmos um pouco (talvez precise ser muito hoje) do último resultado eleitoral, considerando os movimentos aparentemente disruptivos de Bolsonaro durante o governo, que ficaram no discurso, sempre recuando diante do “agora ou nunca”, dando vários ultimatos não cumpridos, não seria possível enxergá-los mais como tentativas de acomodação do que de ruptura? Nisso inclui-se também seu movimento depois da derrota, silenciando e deixando novas manifestações tomarem corpo. Ainda que seja uma acomodação que não sirva para mais do que impedir sua destruição com as ações judiciais em curso e que seguirão com ele fora da Presidência.

"Ordem e progresso também seriam opostos e antagonistas. De um lado, a ordem prefere conservar; de outro, o progresso quer revolucionar. Da disputa entre ordem e progresso surgiriam os grandes líderes brasileiros"

Ainda que não seja e ainda que ele, Jair Bolsonaro, possa parecer se tornar o próximo bode expiatório, não significa que alguma acomodação não seja possível no futuro. Basta ver a acomodação para Lula que vem acontecendo à luz do dia, com anuência de 60 milhões de brasileiros (que não são maioria, porém), revelando que, no Brasil, o “mecanismo do bode expiatório” pode ser desmontado dentro do no nosso “máximo de ordem política”, com o bode sendo devolvido à sala-de-estar como se dela nunca tivesse saído. E devolvido como se fosse o dono da casa.

Difícil de entender, mais ainda de aceitar, mas se você parar para pensar na razão pela qual não tivemos (ainda) uma guerra civil neste país, verá que temos mesmo uma capacidade impressionante de produzir harmonia. Ainda que ao custo de fazer o crime compensar. Mas, como diz o verso de Bruno Tolentino, emprestado como título para o documentário, nem tudo se desfaz, anda em tudo um resquício. Este filme será, tenho certeza, um desses resquícios a provar aos homens do futuro que nem tudo se desfez.

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