A falsa esperança venceu o medo, quem lembra? Era 2002, o ano zero à esquerda da era lulística, aquela em que o país foi tungado como nunca antes na história. Ali a revolução cultural gramsciana, iniciada nas décadas de 1960/70, talvez até antes, encontrou seu auge, sua culminação. Para sustentá-la, uma rede inigualável de cúmplices morais – muitos sem nem saber que o eram, já que nascidos e criados achando que o certo é sempre de esquerda – encastelados nas cátedras universitárias, imprensa e mercado editorial.
A revolução cultural foi tão bem sucedida politicamente que na eleição de seu sucessor, em 2010, o divo petista afirmou: “Pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha. Não é fantástico isso? Vocês querem conquista melhor do que numa campanha neste país a gente não ter nenhum candidato de direita?” Perceberam? Mais valia uma eleição sem alguém de direita do que qualquer vencedor de esquerda. A isso os iluminados chamavam de democracia.
Mas se a esquerda era realmente como o ar na política, tendo tucanado a direita fazia anos, na cultura havia alguma resistência, ainda que contada nos dedos das mãos, impotentes e incapazes de arranhar tamanha hegemonia, e marcados como gado. Ou seja, se eram contra a esquerdização geral e irrestrita, só poderiam estar errados, serem loucos, criminosos – pior, de “direita”. Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Olavo de Carvalho foram quem conseguiram fazer algum barulho na mídia durante a década de 2000. Nas universidades sempre houve um pequeno resto que não ousava se revelar. No mercado editorial, bem, em 2004, num debate no Sesc Anchieta, de São Paulo, o escritor Marçal de Aquino decretou: “todos os escritores hoje são de esquerda”. É óbvio que não eram, mas a frase fazia sentido quando se prestava atenção ao que era publicado pelas grandes editoras e grande mídia.
Mas a cultura não pode ser asfixiada como a política. Quando os canais comuns e normais são controlados numa sociedade, alguma “contracultura” sempre surge e se forma à margem dela. Nesse Brasil que esterilizou sua cultura na mesma proporção em que avermelhou tudo, foi graças ao advento e crescimento vertiginoso da internet que a hegemonia gramsciana não durou muito tempo, se comparada ao tempo levado para se tornar hegemônica. Na internet, as tentativas de controle, boicote e censura servem mais a dar publicidade ao que se quer conter do que o inverso. Os tiros saem pela culatra.
O exemplo mais notório e emblemático disso é a popularidade do filósofo Olavo de Carvalho. Quanto mais o ignoravam e menos lhe davam ouvidos e espaço na mídia, universidades e mercado editorial, mais ele se tornava conhecido e seguido por causa da internet. Se estivesse nos anos 80, por melhor que o filósofo fosse, e é, jamais teria alcançado tantas pessoas se não fosse a internet. Quando seu fenômeno editorial aconteceu, com O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, em 2013, havia uma demanda reprimida no mercado editorial mainstream não apenas por algo publicado pelo filósofo, mas também por algo simplesmente diferente da mesmice anêmica e estupidificante que abundava nos artigos e colunas de opinião na mídia.
E o sucesso do livro abriu uma brecha na hegemonia gramsciana no mercado editorial. Já havia editoras menores, a maioria minúsculas, construindo uma alternativa para publicação e divulgação do que não encontrava espaço nem interesse das grandes editoras. Mas o sucesso d’O Mínimo por uma das grandes adiantou o processo de “abertura cultural” em anos. A partir dali, graças ao editor Carlos Andreazza, a Record abriu um nicho “de direita” dentro da própria editora – que também edita Márcia Tiburi, por exemplo – e vários novos autores foram contratados, muitos desconhecidos e sem qualquer obra anterior senão textos de blogs e posts de Facebook e Twitter. Foi uma aposta que deu muito certo. Alguns livros se tornaram best-sellers, levando a segundos livros dos mesmos autores e contratação de novos.
Mas é ainda algo incipiente e totalmente dependente da presença do editor. Saia Andreazza da Record e desconfio esse nicho desaparecerá em pouco tempo. Isso só não acontecerá se essa “abertura” não for como chuva de verão. Para tanto, é preciso que os autores publicados continuem publicando cada vez mais, que novos, muitos mais, apareçam, mas, e principalmente, que outras grandes editoras façam concorrência, não mais ignorando o sucesso e retorno financeiro que o diferente – ou o que eles chamam de “direita” – pode dar, e dá. Aí será possível ter esperança de que voltaremos a ter uma cultura restaurada – se não com qualidade, ao menos não engolida pela política, tendo a ideologia como o critério de tudo. Para que exista pluralidade real no aspecto político é indispensável que, na cultura, a política seja apenas um dos assuntos, não a forma final de tudo que se faz e publica.
Algo semelhante tem acontecido na grande imprensa, que sempre soube manter um ou outro colunista “de direita” para fingir pluralidade, enquanto no recorte do que noticiar, e mais ainda na manipulação da linguagem do que se noticia, imperou e ainda impera uma única visão de mundo que, se às vezes escapa da forminha estreita da esquerda, jamais transcende o progressismo mais estulto, tornando-se refém de um politicamente correto emburrecedor. Tal como na editora Record, um único órgão da grande imprensa abriu um nicho para o realmente diferente, que foi esta Gazeta do Povo.
Eu, tal como alguns dos novos autores da Record, apenas tinha textos publicados em blogs e redes sociais quando recebi o convite para aqui escrever. Desde que comecei e até o momento, a Gazeta deu cada vez mais espaço a quem não pensa como as primas-donas do jornalismo reinante – que, aliás, tudo que têm a dizer sobre os novos colunistas é que seriam inadmissíveis, como “escutei” de uma delas e tenho registrado para a posteridade. Mas, tal como a Record, é algo ainda incipiente e dependente da presença de editores corajosos a sustentar a aposta de que a pluralidade de visões não só é necessária, como rentável. Se e quando virmos outros jornalões fazendo o mesmo movimento, aí poderemos ter esperança de que também na imprensa não se trata apenas de um sonho de uma noite de verão.
Mas é nas universidades que a essência totalitária da hegemonia gramsciana se revela com toda a sua brutalidade imbecil. A maioria dos novos autores da Record e da Gazeta não vieram do meio universitário, mas apesar dele. Se no meio editorial e da imprensa a guerra é mais fria, feita de indiretas públicas e tentativas mal fingidas de sabotagem, boicote e censura por trás dos panos, nas universidades a manutenção do controle e censura de vozes diferentes é explícito. Conheço alguns professores que jamais se submeteram à imbecilização coletiva que o gramscismo reinante estabeleceu nas universidades, mas que tampouco tinham força ou condição para se contrapor. Mas nos últimos dois anos isso começou a acontecer e aí o conflito foi inevitável.
A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) vem se tornando símbolo maior disso. Em abril de 2016, o professor de Filosofia Rodrigo Jungmann, que ousou dizer em voz alta que não era de esquerda, sofreu e ainda sofre na pele por isso. Ele realizava um evento no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFPE sobre marxismo cultural quando uma professora militante de esquerda invadiu o evento, causando uma confusão que forçou o seu encerramento, tudo porque considerava inadmissível um pensamento diferente do dela. No fim do mesmo ano, durante o que a manipulação da linguagem na imprensa chamava de “ocupação” o que era invasão criminosa de salas de aula em várias escolas e universidades pelo país, o gabinete de trabalho do professor Jungmann na UFPE foi arrombado, destruído e pichado com mimos como “Stálin matou pouco”. Foi também na UFPE que ocorreu o lamentável e simbólico conflito causado por militantes de esquerda contra a mera exibição do documentário sobre Olavo de Carvalho O Jardim das Aflições nas dependências da universidade. Forçaram o conflito até chegar ao ponto da pancadaria física. Na Universidade Federal da Bahia só não ocorreu o mesmo porque foi ainda pior: a universidade proibiu que o filme fosse exibido, o que levou os organizadores a projetar o filme na fachada do prédio.
Creio que os exemplos bastam para se constatar que uma abertura cultural vem ocorrendo nos meios principais de sua criação e difusão, graças a indivíduos corajosos apostando a própria cabeça para que isso aconteça, e numa velocidade mais rápida do que se imaginava possível em 2012. Mas os riscos de ela ser abortada antes de dar frutos são imensos. E o maior deles, no meu entender, nem está na “esquerda” que range os dentes e na primeira oportunidade acabará com todas essas brechas sem pensar duas vezes. A chamada “nova direita” é mais perigosa no momento. Explico por quê.
Como ensinava Hugo Von Hoffmannsthal, “Nada está na realidade política de um país sem antes aparecer na sua literatura”. Ou seja, se o que temos na cultura é mal e mal uma abertura política para pensamentos diferentes do progressismo esquerdista dominante na imprensa, mercado editorial e universidades, mas que em substância ainda não forma uma cultura propriamente dita, apenas uma possibilidade de vir a ser, então o máximo que podemos esperar da nossa política no momento é exatamente isso: o surgimento de possibilidades antes inexistentes ou inverossímeis à direita. E estão aí: de Bolsonaro aos possíveis diferentões outsiders aventados para disputar a Presidência. Quem, em 2012, achava que Bolsonaro estaria tão bem colocado como está nas pesquisas eleitorais? Hoje, a chance de ele vencer é real, previsível até.
O problema é: basta não ser de esquerda para ser bom ou melhor? E é aqui que a “nova direita” tem seu maior desafio. Porque ela não surgiu como um fruto maduro de uma cultura “de direita” existente e consistente. Pelo contrário, ela nasceu militante antes de ter o que dizer e apresentar. Foi inevitável, é verdade, por conta do descalabro petista revelado pela Lava Jato e que levou milhares de brasileiros às ruas contra “tudo o que está aí”. Mas também é inevitável que não bastará ser diferente de tudo que está aí, ser outsider da política tradicional ou institucionalizada, para que dê certo, que faça algo que preste. Pegue-se o exemplo de João Dória. Surfou na onda, parecia que tinha algo real a apresentar, mas não deu um ano de mandato e está aí, todo envergonhado e impotente, inaugurando viaduto com o nome de Dona Marisa.
A “nova direita” tem tudo para ser mais um repeteco da brasileiríssima vida inteira que poderia ter sido e não foi. Não tendo ainda uma cultura genuína da qual se alimentar, pendura-se em culturas estrangeiras sem as replantar em solo pátrio, crente que é só aplicar que dará certo. Não tendo uma cultura diferente da hegemônica em que nasceu e cresceu, só sabe agir conforme o que aprendeu nela e com ela, ou seja: ideologicamente e mais nada. Basta ver alguns formadores de opinião mais famosos dessa nova direita para se perceber que estão militando mais do que outra coisa. Evitam brigar internamente “porque o inimigo está lá fora e é a esquerda”. Nada mais distante dos grandes opinadores do passado, que podiam errar na sua busca pela verdade, mas tinham por inimigo a mentira, não outra coisa. A forma mental da maioria dessa “nova direita”, no fim das contas, é a mesma de um esquerdista gramsciano, mas com sinal trocado. A esquerda aceita qualquer um que comungue dos seus ideais e descarta na hora qualquer um que os traia. E muitos da nova direita pensam que é assim que tem de ser mesmo.
A “nova direita” não é fruto de uma cultura restaurada, ou seja, uma cultura digna do nome, não rebaixada à ideologia, seja de esquerda ou direita, mas que abarca e transcende toda e qualquer ideologia e as coloca sob o jugo de valores muito maiores e universais, como a verdade, o bem e o belo. Em outras palavras, não é porque você é de direita ou de esquerda que está “certo”, que “tem razão”, que é defensor “do bem” contra o mal. Esse maniqueísmo é precisamente o resultado da hegemonia gramsciana que transformou a esquerda no “lado certo” da história contra o “fascismo”, que é como ela considera toda direita que lhe faça frente. Se nada está na realidade política de um país sem antes estar em sua literatura, ou cultura no fim das contas, é impossível que a “nova direita” seja e se comporte diferente da velha e atual esquerda se optar por concentrar suas ações na política apenas. É só constatar, aliás, como muitos tratam Bolsonaro. Exatamente como a esquerda tratava Lula – e ainda trata. Ou vai dizer que Lula não é um mito para a esquerda? E tenho certeza de que a mentalidade maniqueísta de muitos bolsonaretes não conseguirá pensar nesse exemplo senão do modo como um petista pensa: “ele está falando mal do Bolsonaro”. Não, criatura, estou falando mal de você.
Enfim, se a “nova direita” quiser ser realmente diferente da esquerda gramsciana, tem de começar reconhecendo a verdade de si mesma: não sabe quem é nem o que fazer. Que a oportunidade de ação histórica lhe caiu no colo, mas ela não está preparada para isso. A verdadeira “nova direita” estava e ainda está nas grandes manifestações populares de 2013 em diante: uma massa informe cansada de ser tutelada pela classe política, seja de esquerda ou direita, mas incapaz de se expressar direito, não sabendo bem o que quer porque não sabe nem sequer contar a história direito de como chegamos onde chegamos.
E esse é o “grande legado” do gramscismo que arrasou quase toda a cultura brasileira: invertemos completamente a realidade das coisas. No Brasil, nada está na sua cultura sem antes estar na sua realidade política. Daí porque a “nova direita” pareça mais preocupada e interessada em eleger vereadores do que lutar para que a abertura cultural seja consolidada e as possibilidades de ações político-eleitorais sejam algo comum e corriqueiro, consequência de uma cultura viva, e não como se fossem feitos heroicos de Davis contras Golias, que é o que são esses vereadores combativos de direita espalhados por aí. Amém por eles, mas terão vida curta se a luta for apenas política.
Se a “nova direita” quiser ser algo mais do que um problema num futuro próximo, um obstáculo tal qual a esquerda atual, então tem duas missões inescapáveis pela frente: 1) começar a contar sua própria história, sabendo de onde veio e graças a quem existe hoje; e 2) resgatar a cultura brasileira relevante que jaz enterrada num passado não muito distante e que a internet permite que possa ficar à nossa disposição a um clique de distância. Se o item 2 é mais importante, o 1 é mais urgente. A boa notícia é que tem gente muito boa trabalhando nas duas missões, ninguém precisa começar do zero. Mas é indispensável apoiá-los, divulgá-los, ajudá-los como for possível.
De minha parte, pouco posso fazer além do que estou tentando fazer aqui nesse espaço que esta Gazeta do Povo me concedeu. O artigo de hoje é o primeiro desta tentativa de ajudar a contar a história dessa “nova direita”, indissociável do gramscismo dominante, como um seu fruto. É impossível compreender o Brasil de hoje, à esquerda e direita, sem conhecer direito o que foi e é essa revolução cultural gramsciana. E, como disse, ninguém precisa começar do zero, já tem quem fez o serviço para nós. No caso, sugiro ao leitor que comece pela leitura de A Nova Era e a Revolução Cultural – Fritjof Capra e Antônio Gramsci, de Olavo de Carvalho, um dos livros que resenharei neste espaço neste ano de 2018.
Um de meus propósitos é ler o máximo possível de livros publicados oriundos dessa abertura cultural e analisá-los por aqui. Não é grande coisa, mas não vejo ninguém dentro da própria “nova direita” lendo e analisando seus próprios membros para além do silêncio público ou a bajulação militante. Do silêncio já escapei, espero apenas não cair na tentação da bajulação, coisa, aliás, bem típica da cultura brasileira, não é coisa de gramsciano, não.
Como a suspensão do X afetou a discussão sobre candidatos e fake news nas eleições municipais
Por que você não vai ganhar dinheiro fazendo apostas esportivas
Apoiadores do Hezbollah tentam invadir Embaixada dos EUA no Iraque após morte de Nasrallah
Morrer vai ficar mais caro? Setor funerário se mobiliza para alterar reforma tributária
Deixe sua opinião