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Cristo Crucificado, Diego Velásquez. Foto: Wikimedia Commons
Cristo Crucificado, Diego Velásquez. Foto: Wikimedia Commons | Foto:

Pelo evangelhos de Mateus e Marcos, as últimas falas de Jesus foram aos gritos. O derradeiro, apenas grito, daí a morte. O anterior, o brado perturbador: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” Já li muita explicação sobre, entendo-as e também o sentido da referência ao salmo 22, mas mesmo assim, toda vez que releio o que se passou nesta hora derradeira da Paixão de Cristo, à hora nona, equivalente às 15 horas atuais, vem o espanto. E o incômodo.

A explicação para esse Jesus demasiado humano é precisamente esta: Ele era demasiado humano mesmo. Nas palavras de Bento XVI, em seu Jesus de Nazaré – Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição: “Em Jesus, a humanidade não é absorvida ou reduzida pela divindade. A humanidade existe inteiramente como tal”. Da angústia no monte das Oliveiras ao tormento do último instante, eis a humanidade inteiramente como tal diante do absurdo, do horror, da morte: somos impotentes, angustiados, desesperados procurando algum auxílio, ajuda, qualquer coisa que ao menos console, se não pode nos salvar.

É arqui-conhecida a piada de que não existem ateus quando um avião está caindo; estariam todos pedindo a Deus que intervenha. Não creio que todos fariam isso, mas duvido que algum consiga conter o desespero, o grito, mesmo que sufocado, pedindo socorro a qualquer um. Mais do que isso, duvido que recusassem se fosse Deus quem viesse resgatá-los. Acho que até reclamariam: “por que me abandonaste?”

E sem saber estariam rezando o Salmo 22, como Jesus estava, pois seu brado é o primeiro dos seus versos. Gosto de pensar que Jesus ali começou uma oração que cabe à humanidade inteira continuar, recitando o belo Salmo, que, se começa no desamparo, termina na redenção pela entrega confiante à vontade de Deus. Não à toa, o Salmo seguinte, talvez o mais famoso, cante que “Iaweh é meu pastor, nada me falta”, terminando com “Sim, felicidade e amor me seguirão / todos os dias da minha vida; / minha morada é a casa de Iaweh / por dias sem fim.”

O mesmo Bento XVI, aliás, citando os Padres da Igreja, diz que o brado de Jesus na hora nona foi: “Sem dúvida, são palavras muito pessoais, surgidas na luta com Deus, mas palavras às quais, no entanto, estão ao mesmo tempo associadas em oração todos os justos que sofrem; todo o Israel, ou melhor, a humanidade inteira que luta, e por isso esses Salmos abraçam sempre o passado, o presente e o futuro: situam-se no presente de sofrimento e, todavia, já levam em si o dom do atendimento, da transformação”.

Do presente de sofrimento ao dom da transformação. Em outras palavras, da sensação do abandono de Deus ao efetivo abandono em Deus, eis o encontro do sentido de vida. Mas que seria vão se Jesus não tivesse ressuscitado. Como escreveu o Apóstolo Paulo em sua primeira carta aos Coríntios: “E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé. (…) Se temos esperança em Cristo somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens.” (I Coríntios 15:17, 19)

Fé e esperança. É curioso como somente no desespero nos damos conta de que o que nos sustenta na vida é a fé e a esperança. Victor Frankl dizia que costumava tratar alguns pacientes suicidas da forma mais chocante possível, perguntando: “por que você não se mata?” Porque, de fato, se alguém sofre tanto e não se mata é porque tem ainda um pingo de fé e esperança de que o sofrimento passará, que amanhã ou depois será melhor ou algo assim. Pouco importa se acreditam ou não em Deus, sua fé e esperança podem nem ter objeto, destinatário, e ainda assim aí estão, sustentando suas vidas. É Deus agindo, ainda que você O negue por mais de três vezes.

Não à toa a fé e a esperança são consideradas virtudes sobrenaturais, divinas, infundidas por Deus no homem. Abandonados a nós mesmos, estamos condenados. De novo, Bento XVI: “Ninguém, por si mesmo, é suficientemente forte para percorrer o caminho da salvação até o fim. Todos pecaram. Todos precisam da misericórdia do Senhor, do amor do Crucificado.”

Voltando ao grito de lamento de Jesus na hora final, Bento XVI complementa o que disse sobre a humanidade existir inteiramente como tal em Jesus: “(…) e, todavia, é sustentada pela Pessoa divina do Logos.” No monte das Oliveiras Jesus havia pedido para que o destino a Ele reservado fosse deixado de lado, mas que se fizesse a vontade do Pai, não a dele. Humanidade e divindade presentes sem confusão nem separação. No brado final, a humanidade impotente resgatada depois pela divindade que ressuscita.

Sem Jesus Cristo, confesso, eu não acreditaria em Deus nenhum. Sem existir Nele a humanidade inteira como tal, eu não quereria a Deus. Sou como o poeta espanhol anônimo do famoso poema A Cristo Crucificado, em tradução de Manuel Bandeira:

 

Não me move, meu Deus, para querer-te

O céu que me hás um dia prometido;

E nem me move o inferno tão temido

Para deixar por isso de ofender-te.

 

Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te

Cravado nessa cruz e escarnecido

Move-me no teu corpo tão ferido

Ver o suor de agonia que ele verte.

 

Moves-me ao teu amor de tal maneira,

Que a não haver o céu ainda te amara,

E a não haver o inferno te temera.

 

Nada me tens que dar porque te queira;

Que se o que ouso esperar não esperara,

O mesmo que te quero te quisera.

 

Não sei se na minha hora nona bradarei como Jesus, mas até isso Ele já fez por mim e por tê-lo feito, sinto-me acolhido, perdoado, amado. Sem Ele eu jamais entenderia o que é sofrer, muito menos aceitaria a cruz nos momentos – e têm sido mais do que gostaria – em que me visita. Que a cada Páscoa eu O entenda mais por amá-Lo mais, e nunca o contrário.

A todos os leitores, uma santa e feliz Páscoa.

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