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Gal Costa canta em homenagem a João Gilberto, na TV Globo
Gal Costa canta em homenagem a João Gilberto, na TV Globo. A cantora faleceu em 9 de novembro de 2022.| Foto: TV Globo / Renato Rocha Miranda

Há semanas em que o difícil é escolher sobre o que escrever, em outras encontrar sobre o que escrever. Às vezes acontece de um assunto se impor, mais raro perdurar avançando pelos dias, tornando-se desesperador quando permanece por semanas sem fim. É o que tem acontecido, infelizmente.

Das agruras de cronista, nenhuma me é pior do que essa, até porque, do tanto já dito e redito sobre o que não pode ser dito, que mais haveria a falar senão mais do mesmo sobre mais do mesmo? Ou (mais) um lamento pretensiosamente lírico de impotência comungada com o leitor?

E a pensar estava nessa impotência quando veio a notícia do falecimento de Gal Costa. Seria um desses assuntos a se impor? Acompanhando a grande mídia durante o dia, bem que tentaram, mas sem sucesso. A expectativa pela divulgação do relatório das Forças Armadas sobre as eleições era maior, como chuva de prata que cai sem parar, e quando enfim veio a público... amanhã será jamais.

É quase inevitável não enxergar nas mortes de Rolando Boldrin e Gal Costa um símbolo do que estamos a viver

Já desistindo de procurar por outro tema, eis que no fim do dia li nas redes sociais que Rolando Boldrin também havia morrido. Aí o ontem falou mais alto no meu peito humano. Brotaram do coração as memórias de uns tantos domingos da infância, quando acordava cedo e brincava no tapete da sala com os jogos de botões, fazendo grandes finais de Copa com Zico heptacampeão mundial, com a tevê ligada ao fundo. Quando começava a abertura do Som Brasil, com Boldrin cantando aquela moda que eu gostava, eu parava e prestava atenção, sem entender como seria remédio para os meus desenganos, que ainda nem os tinha.

É curioso como alguém pode fazer tanta parte de sua história sem que você conheça muito sobre a pessoa. Rolando Boldrin era daquelas presenças constantes para mim, por causa de sua voz. Eu pouco assistia ao programa, voltava a brincar e a tevê era um barulho de vida a fazer as vezes de torcida de minhas partidas imaginárias. A única voz constante era a dele. Várias vezes, no futuro, não o reconhecia pelo rosto, nem pelo nome, mas bastava ele falar que lá ia eu, como criança, lembrar dos meus botões.

Quando Boldrin já não apresentava mais o programa, havia sido substituído por Lima Duarte, meus botões já sofriam a rivalidade de jogos de futebol “reais”. Acompanhava um amigo nas partidas de futebol de salão do pai dele nos domingos de manhã. Não lembro onde era a quadra, mas recordo bem das árvores em torno, acho que araucárias ou pinheiros. Lembro também do banco traseiro do carro, acho que um Santana, mas principalmente de uma música que quase sempre tocava, não sei se no toca-fitas ou rádio: Um Dia de Domingo, no dueto de Gal Costa com Tim Maia.

Há uma versão desta música somente com Gal cantando, gravada ao vivo. Gosto dos arranjos novos criados, transformando a breguice do original em algo cool, com Gal brincando de imitar Tim, cantando com voz grave um trecho da música. O dedilhar da guitarra me devolve àquelas manhãs de domingo, à espera dos adultos terminarem suas partidas e liberarem a quadra para brincarmos. Uma quadra imensa, com traves de gol de tamanho desproporcional, uma bola pesada demais. Ainda assim, tentávamos. E os chiados dos tênis nas tábuas da quadra faziam parecer que o jogo era para valer. Como a nossa democracia, pensando bem.

É quase inevitável não enxergar nas mortes de Boldrin e Gal um símbolo do que estamos a viver. Porque é fácil identificar Boldrin com a voz do caipira do interior, representante da música regional, daquele Brasil que preferiu Bolsonaro. Ainda que ele não tenha votado, ainda que defendesse outra coisa. Não sei e não faz diferença para isso. Assim como Gal representaria o outro lado, aquela voz que, embora igualmente regional, tornou-se mainstream e, por isso mesmo, recebeu muito mais destaque na grande imprensa do que a morte de Boldrin (o que diz muito da imprensa, nada sobre Boldrin ou Gal).

Mas não importam os lados, o que pensamos, o que representamos, o quão diferentes somos, o quão distantes, apartados, divididos estejamos. A morte nos reúne a todos num vasto Eclesiastes, cuja palavra significa “aquele que reúne”. Ainda que seja a reunião numa lembrança de um tempo em que tudo era um Som Brasil, cabendo ambos, todos, numa manhã de domingo, vendo o sol amanhecer. Hoje, talvez isso não seja mais possível. O jeito é tocar essa vida marvada, fazendo de conta que ainda é cedo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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