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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Ficção Política

Tim Maia e o STF em 2033

(Foto: Rosinei Coutinho/STF)

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Era uma tarde típica em Alexandrópolis (antiga Brasília). O juiz auxiliar estava com o olhar perdido na praça do Único Poder, desalentado. Mais uma ação do PSOL, mais uma reescrita do passado. Quando foi com Roberto Carlos, não se incomodou tanto, nem gostava. Mas o Tim…

Não ousava pensar em como ficariam as músicas regravadas por inteligência artificial. Tinha arrepios só em lembrar de como ficaram os versos de Detalhes, mas sorriu ao recordar a versão clandestina. Por mais que a derrubassem, sempre reaparecia nos streamings, sendo mais ouvida do que a outra. E cantarolou, sentindo-se um anarquista:

“Eu sei que um outro ministro deve estar falando / Ao seu ouvido / Palavras de poder como eu falei / Mas eu duvido / Duvido que ele tenha tanto rancor / E até os erros do meu português ruim / Imediatamente você, você vai ser preso por mim.”

Não resistiu. Levantou-se e trancou a porta do gabinete, pegou o segundo celular, colocou os fones e se permitiu ser livre. “Olha que coisa mais linda, mais democrata / É ele, ministro, que vem e não passa”, cantarolava, quando se deu conta de que poderia ser ouvido. Quase derrubou o celular. Apenas mais uma. Fechou os olhos, sorriu e lançou os braços para o alto, murmurando:

“Quando eu digo que deixei de te prender / É porque eu te prendo / Quando eu digo que não quero mais prender / É porque eu te prendi / Não tenho medo de te dar minha punição / Nem confessar que você está em minhas mãos / Mas não posso imaginar / O que vai ser de mim / Sem esse inquérito um dia.”

Guardou tudo e ficou minutos em silêncio, com o olhar perdido num canto da prateleira onde costumava ter livros. Como um condenado à câmara de gás, levantou-se novamente, foi à sala vizinha, bateu à porta do ministro. Autorizado a entrar, sabia que o encontraria exatamente como estava: sentado no trono, com olhar altivo, o gato no colo, acariciando-o.

— Chegou essa ação, com pedido liminar… — e entregou o papelote contendo o resumo feito por ele mesmo, do que se tratava a ação e o pedido. — É pra conceder a liminar, certo? — o ministro lhe voltou um olhar paternal de senhor feudal, sorrindo como se fosse óbvio. — Aceito as novas letras como eles fizeram ou produzimos as nossas?

— Confio neles e temos muito trabalho, pode aceitar na íntegra. Não esqueça dos pontos de exclamação.

Dias depois, o juiz chegou bem cedo, para garantir que não encontraria ninguém. Eram 11h26 da manhã. Trancou o gabinete e ligou o segundo celular. As primeiras versões piratas das músicas do Tim tinham sido lançadas: Vale Nada, Não Preciso de Motivo e Imperador dos Sete Mares. Lamentou que a sua, Não Vou Ficar, não tenha aparecido. “Será que perceberam que é a música original?”, pensou.

Ajeitou-se na poltrona, colocou os fones e se deleitou. Não segurou a risada alta em: “Vale, vale nada / Só vale o que eu fizer / Só vale o que eu quiser / Só não vale dançar com o bolsonarismo / Só vale dançar com o PT.” Ficou tenso em: “Não preciso de motivo pra te prender / Estou vendo a hora de te f*der / Não preciso de motivo, vai ser agora / E é nessa hora que o homem chora / A sua dor é gostosa demais pra mim.”

Conferiu o relógio. Ainda estava distante da hora de alguém chegar. Não resistiu, tirou os fones e conectou o celular às caixas de som, aumentando bem o volume. Levantou-se e se dirigiu ao janelão, escutando enquanto contemplava o horizonte. Quando repetia o refrão de Imperador dos Sete Mares, sentiu um ar gelado encanar no gabinete. Ao se virar, estremeceu. Lá estava ele, com o gato no colo.

Desligou o som. Pensou em declamar Réu Confesso, mas a voz não saiu. Abaixou o olhar, não sem antes perceber aquele sorriso cínico se abrindo, escutando em seguida a voz baixa, pausada e satisfeita: “Uh, uh, uh, que beleza…” Segundos de silêncio que pareceram 17 anos, 6 meses e R$ 30 milhões. O homem continuou, com a mesma satisfação: “Complete a frase: liberdade de expressão não é…”. Sabia que não havia o que fazer.

A la mierda todo, pensou, sem entender por que pensou em espanhol, mas assim foi. De costas eretas e ombros para trás, cantou a plenos pulmões: “Você / É mais do que rei / É mais que sensei / É mais que democrata, baby / Você / É algo assim / É tudo pra mim / É como eu sonhava, baby / Sou feliz agora / Não me mande embora, não.” O ministro alargou o sorriso, que não saiu do seu rosto mais.

Enquanto o camburão seguia pelo Eixo Monumental, o porteiro do tribunal, que estava ao lado do ministro observando o veículo se apequenar cada vez mais, comentou:

— Vai ficar tudo bem.

Ao que o ministro, acariciando o gato, respondeu, sem perder o sorriso:

— Sempre pode melhorar.

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