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Em entrevista publicada em 2000, perguntaram a Ariano Suassuna como ele via a igreja no Brasil daquela época. Sua resposta: “Com essas missas em forma de shows? Nem me fale! Como é que a igreja, a minha igreja, cai numa coisa dessa! Estão invertendo tudo: em vez de entrar no mundo para converter o mundo, começam a trazer as deturpações do mundo para dentro da igreja.”
A seguir, perguntaram: “e a teologia da libertação?”. Ariano respondeu: “Vejo com muita reserva. Acho que eles, do mesmo modo que esses padres de agora - que se curvam para o ‘êxito’, entre aspas - se inclinaram para muitas coisas, até para o stalinismo.”
Se vivo estivesse, gostaria de lhe perguntar como veria as reações que surgiram a essas coisas - às show-missas e teologia da libertação -, que embora não pareçam ter uma unidade ou formar um movimento, guardam traços semelhantes o suficiente para chamá-las de “tradicionalistas”. Veria nisso uma restauração do que foi invertido ou só mais uma forma de inverterem tudo mais um tanto?
Pois acho que descobri, sem querer, qual seria sua resposta. Quase um século antes daquela entrevista, Euclides da Cunha - das maiores, senão a maior influência em Ariano - publicou seu clássico Os Sertões, no qual descreveu os continuadores - a quem chamou de “missionários modernos” - dos primeiros evangelizadores pelos sertões. Fiquei impressionado ao reler, imediatamente percebendo como sua descrição se aplica também, quase na íntegra, a muitos dos tradicionalistas de hoje. Ao leitor que sabe do que estou falando, veja se não tenho razão lendo o trecho transcrito abaixo - e ao que não sabe, fique sabendo agora:
“Sem a altitude dos que o antecederam, a sua ação é negativa: destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não tem o talento e não tem a arte surpreendente da transfiguração das almas. Segue vulgarmente processo inverso daqueles: não aconselha e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. É brutal e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da sombra de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo, numa algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão.
Não adianta fazer a coisa supostamente certa quando se está sendo a pessoa errada. Isso não é a imitação de Cristo
É ridículo e é medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe das bocas trágicas.
Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida - não a conhece; mas brama em todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado avalanches de penitências, extravagante largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora…
E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o.”
“Não aconselha e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja.” Não são assim muitos desses tradicionalistas? São rápidos, firmes, até cruéis ao condenarem os outros ao inferno, colocando-se como um escrivão do juízo final a conferir se todos os documentos vieram com os carimbos certos. Seriam, portanto, mais parecidos com o diabo no julgamento final do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, do que a própria Compadecida e seu Filho”.
Não é pequena a quantidade de católicos tradicionalistas enlouquecendo - não exagero ao usar essa palavra, acredite. Posando de fortes, vivem é apavorados com o mundo, encerrados em suas comunidades como forma de proteção, reforçando neuroses compartilhadas, preocupando-se demasiadamente com o caiado de ritos e símbolos - como o tamanho da barra da saia, ou se a mulher usa ou não um véu, se fulano comungou na boca ou com as mãos -, criando uma atmosfera de aparente serenidade, quando é só tristeza, e que com o tempo vai se tornando persecutória e sufocante. Darei dois exemplos.
Um: soube de um grupo de whatsapp de mães católicas que expulsaram uma do grupo por deixar de fazer homeschooling e colocar seus filhos em escola - precisava voltar a trabalhar para ajudar no sustento, que é a realidade de 99% das famílias brasileiras. A justificativa para a expulsão foi a de que algumas mães não queriam que seus filhos tivessem contato com crianças que vão à escola. Espero não ser preciso explicar a insanidade disso.
Dois: conversando com uma pessoa tradicionalista, disse-me que se todo mundo vive em uma bolha, por que ela não poderia viver na sua? De fato, pode viver na bolha que quiser, mas Jesus Cristo não disse: “ficai e protegei-vos”, mas “ide e evangelizai”.
Se reparar bem, verá que tradicionalistas não evangelizam de fato, apenas atraem católicos frustrados com a infestação na igreja de shows-missa e teologia da libertação. Até pode parecer, por contraste, que são mais católicos do que esses todos, mas sua arrogância prova que não. Não adianta fazer a coisa supostamente certa quando se está sendo a pessoa errada. Isso não é a imitação de Cristo.




