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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Erros corrigidos

Onde o bom senso foi morar: entre Tunas e Cerro Azul

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Desenhar limites e fronteiras sem considerar a realidade sempre provocou pequenas e grandes tragédias. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Manhã nublada, chuvisco que não molhava. Voltava para casa depois de deixar meu filho na escola. No rádio, notícias. Ando envelhecendo mesmo. Ao menos eram notícias locais. Há quanto tempo só damos valor ao que é nacional, global etc.? Sinto falta das novidades de bairros, da mudança de sentido de ruas, essas coisas. Enfim, o trânsito parado. De repente: “Assembleia Legislativa do Paraná aprova projeto que altera limite territorial entre Tunas do Paraná e Cerro Azul”.

Curioso, ao chegar em casa, mergulhei para saber melhor. Não, não moro nesses municípios, não conheço ninguém de lá, estou incerto até se sei onde ficam. Mas queria entender. E o que encontrei foi um microcosmo do erro que se repete, insidioso e tolo, através da história da humanidade: as marcações anteriores haviam sido feitas por “linhas retas”, num mapa abstrato, sem a menor consideração pela “disposição dos imóveis e suas respectivas matrículas de registros imobiliários”.

A constatação de quão facilmente erros tão evitáveis podem criar transtornos lembrou-me das tragédias em África, onde fronteiras criadas arbitrariamente levaram a catástrofes

Pelo que entendi, tinha casa dividida ao meio: sala e cozinha ficavam em Tunas, quartos e banheiro em Cerro Azul. Um erro tolo, por mera falta de verificação in loco, como se diz tecnicamente no jargão jurídico, mas com consequências humanas sérias, criando conflitos de jurisdição, gerando incertezas, como no caso da comunidade de Tigre, que, embora pertencente a Cerro Azul, gravitava – e era atendida – por Tunas do Paraná. É o que dá tentar fazer a vida caber na matemática preguiçosa de um traçado.

Essa constatação, de quão facilmente erros tão evitáveis podem criar transtornos, lembrou-me das tragédias em África. Um continente cujo mapa é uma cicatriz geopolítica, testemunha muda da sanha europeia. Na Conferência de Berlim (1884-85), aqueles senhores, com suas regras, seus compassos e réguas, desenharam países ignorando a realidade, as etnias, culturas, línguas, rivalidades ancestrais e comunidades coesas. Traçaram linhas arbitrárias na sala de jantar europeia, selando o destino de milhões. E qual foi o resultado?

As linhas se tornaram rios de sangue, fruto de guerras civis que duraram décadas, com genocídios que chocaram o mundo: Ruanda, Sudão, Angola, Nigéria, Congo, os exemplos abundam. Povos foram forçados a viver juntos sob a bandeira de uma nação artificial, ou separados de seus irmãos por uma linha que não significava nada para eles, mas tudo para os colonizadores. A busca por recursos, a geopolítica de potências distantes, tudo se sobrepôs à dignidade e à identidade local. E os resultados, como sabemos, foram catastróficos, uma fonte contínua de instabilidade que perdura até hoje.

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Iria acrescentar a questão da Palestina aqui, mas lembrei antes do deputado federal Paulo Bilynskyj, infelizmente. Com sua proposta recente de dividir o Brasil. Um “Brasil do Norte” e um “Brasil do Sul”. Como o Norte e Nordeste votariam no Lula, e o Centro-Oeste, Sudeste e Sul no Bolsonaro, separem-nos e “pronto, acabou”, estariam resolvidos os conflitos decorrentes da polarização atual. Suspiro, respiro, repito 6x.

Tentei, por dever de ofício, buscar uma racionalidade por trás do que me parecia apenas estultice. Se arrependimento matasse... Descobri que era pior. O deputado alegou também que “historicamente, quanto maior a extensão territorial, maior a tendência à ditadura. Quanto menor o país, mais democrático ele é”. Não é possível que falasse a sério. Estados Unidos, Austrália e Canadá, para ficar em alguns países extensos, teriam mais chance de se tornarem ditaduras do que Coréia do Norte, Cuba, Venezuela e Eritreia? Mas ele falou sério.

Diante de tanto absurdo, de tamanha desconexão com a realidade, este exemplo de Tunas do Paraná e Cerro Azul corrigindo um erro crasso pela força do consenso e da boa convivência abre uma fresta de lucidez

Ora, o tamanho geográfico não é sequer um fator determinante para a democracia; são as instituições, a cultura política, o desenvolvimento econômico, o respeito ao pluralismo e a participação cívica que a edificam. A ideia de que um país menor é intrinsecamente mais democrático é uma falácia que ignora a complexidade das interações humanas e políticas. É a mesma simplificação perigosa que traça linhas retas sem consultar o chão onde a vida pulsa.

A tragédia dos limites arbitrários, que se manifesta do micro ao macro, deveria me deprimir. Do traço equivocado que dividia um imóvel entre dois municípios à caneta colonial que desenhou nações africanas fadadas ao conflito, e agora à proposta irresponsável de rachar um país inteiro por conveniência política. Mas ocorreu o contrário. Porque diante de tanto absurdo, de tamanha desconexão com a realidade, este exemplo de Tunas do Paraná e Cerro Azul corrigindo um erro crasso pela força do consenso e da boa convivência abre uma fresta de lucidez.

Pensando seriamente em me mudar para a comunidade de Tigre, em Tunas do Paraná. Em um país que se debate entre a fúria das linhas ideológicas e a insanidade de dividir-se ao meio por mera birra eleitoral, talvez a verdadeira prudência resida onde, ao menos, se conseguiu arrumar um mapa. Ainda é insuficiente para restabelecer as fronteiras do bom senso, mas já é motivo suficiente para erguer uma bandeira. E vale a pena repetir: pela força da razão, do diálogo, do consenso, da boa convivência.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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