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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Filme

A fortuna do sofrimento humano

A Chegada
Amy Adams no papel de Louise Banks em "A Chegada". (Foto: Jan Thijs/Paramount Pictures/Divulgação)

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Como podemos ser afortunados sabendo que o futuro é trágico? Essa é a questão central que A Chegada (Arrival, 2016) propõe. Já escrevi sobre esse filme antes; quanto mais eu assisto, mais eu tenho certeza de ser uma obra de arte sobre o sentido humano do sofrimento. Agora percebo que só a repetição, a insistência de quem retorna ao mesmo ponto, permite alcançar o coração de um enigma. Volto a ele mais uma vez porque, entre a confusão da guerra, do medo, das falsas certezas de um tempo de ruínas, compreendo que seu drama não é sobre alienígenas ou linguística, mas sobre uma experiência mais radical: a resposta do amor ao sofrimento.

O enredo, por si só, já é denso. Louise Banks, linguista, é convocada para se comunicar com seres alienígenas cuja linguagem desafia toda lógica humana. Os heptápodes escrevem em círculos, num “idioma” que não separa passado, presente e futuro. Louise, à medida que internaliza essa linguagem, passa a perceber o tempo como eles: tudo é simultâneo, tudo já está dado, tudo se conecta em uma unidade. E é nesse momento que o filme revela sua chave hermenêutica – aquilo que parecia lembrança, os chamados “flashbacks” de uma filha morta, não são passado. Só agora entendi, trata-se de vislumbres do futuro, eventos ainda por acontecer e que já estão inscritos no tecido da existência de Louise.

O gesto de Louise é radicalmente trágico e, por isso mesmo, profundamente humano: ela diz sim à vida, sabendo do preço

O dilema da história se impõe: Louise vê, antes de acontecer, a vida de sua filha, da concepção à morte por câncer. Ela sabe de antemão o destino trágico, conhece cada cena de dor e cada despedida. São cenas muito bonitas no filme. Louise sabe também que seu marido, Ian Donnelly – o físico que ela conheceu na missão e pai da menina – a deixará ao descobrir que ela sabia do futuro e mesmo assim escolheu viver tudo aquilo. O gesto de Louise é radicalmente trágico e, por isso mesmo, profundamente humano: ela diz sim à vida, sabendo do preço. Escolhe amar, apesar do fim já anunciado: a filha morrerá ainda criança.

Esse tipo de amor escapa à gramática sentimental moderna, que se tornou a do hedonismo liberal. Vivemos sob a ética do prazer imediato e da autoexpressão infinita, uma idolatria dos afetos que já não reconhece o outro a não ser como objeto de satisfação de desejos. Amar, neste contexto, tornou-se uma busca de plenitude narcisista: só aceitamos o que não fere, só permanecemos quando a experiência é confortável, só dizemos “sim” à vida se ela nos der garantias. O amor, nesse regime, é um contrato revogável, onde a alteridade existe enquanto não custa nada, enquanto não ameaça o projeto individual de felicidade. Trata-se de um amor de consumo, que se desfaz no momento em que surge a menor sombra de dor ou desconforto – e, nessa lógica, até o nascimento de uma vida pode ser tratado como ameaça, algo que se evita em nome da própria tranquilidade.

Contra esse modelo ético surge o gesto de Louise. Ela não busca a felicidade privada, não calcula o custo de cada vínculo. Ao contrário, ela ama mesmo sabendo que o destino final é a perda, que o sofrimento é inevitável, que a alegria será breve e a dor, longa. Sua escolha, na verdade, é uma recusa da lógica da utilidade. É o oposto do amor egoísta, que faz do outro um espelho dos próprios desejos. O amor de Louise, à semelhança do ágape cristão, é entrega e consentimento. Não é o amor que se consome na experiência erótica, nem o amor que exige reciprocidade ou retribuição. É um amor que aceita o tempo inteiro, com todos os seus ciclos, todos os seus fins.

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No filme, esse sacrifício, aliás, não é exclusivo dos humanos. Em determinado momento, durante o ápice da incompreensão entre humanos e os heptápodes, um deles – Abbott – entrega sua própria existência em meio ao ataque precipitado dos militares. Seu companheiro, Costello, relata a Louise: “Abbott está no processo de morte”. A frase, fria e estranha, revela que, para quem vê o tempo como totalidade, a morte não é interrupção, mas parte do ciclo, de um eterno retorno. Abbott se sacrifica para que a comunicação – e o dom da linguagem – permaneça possível. É um sacrifício sem cálculo, sem vingança, feito para que o outro aprenda, para que haja futuro. Esse gesto traz a mesma lógica trágica que percorre toda a narrativa: dar-se mesmo sabendo que o outro pode não compreender, perder para que o sentido sobreviva, doar-se sem promessa de reconhecimento. O amor, em sua forma mais alta, é sempre sacrifício.

Essa dimensão se tornou ainda mais clara para mim ao recordar a história recente de Luis Enrique, atual técnico do Paris Saint-Germain. Em 2019, ele perdeu a filha Xana, vítima de um câncer aos 9 anos. Quando entrevistado, surpreendeu a todos ao afirmar: “Eu me considero afortunado. Tivemos nove anos maravilhosos. Falamos dela todos os dias. Xana ainda nos vê. Como quero que Xana pense que vivemos isso?” O testemunho é de alguém que não se resignou à perda, mas que reconhece na memória compartilhada, na permanência do vínculo, a força de um amor que não foi vencido pela morte. Há nesse olhar algo que recusa o ressentimento, que transforma a dor em gratidão, que não faz do sofrimento um argumento contra a própria existência.

A fortuna de Louise, de Luis Enrique e de todo aquele que ama sem garantias é transformar o sofrimento em permanência

Essa perspectiva é também a do cristianismo, em seu núcleo mais escandaloso. O Deus cristão sabe de antemão o destino do Filho, sabe do abandono, da traição, do martírio. Ainda assim, ama e entrega. Ainda assim, não recua. Maria, ao aceitar o anúncio do anjo, consente com a dor, não com a promessa de bem-estar. O gesto da Encarnação é, portanto, o gesto do amor trágico: a aceitação do tempo como totalidade, sem buscar atalhos, sem amputar o sofrimento do percurso. O tempo de Deus, como o dos heptápodes, é simultâneo, já está consumado. Só nos cabe consentir.

No filme, a linguagem dos heptápodes é a tecnologia do tempo. Não é arma. É o dom que transforma a mente, que abre o humano para a experiência do eterno. Não se trata de magia, trata-se de um convite: aprender a aceitar a existência como ela é, com seus limites, sua dor, sua finitude. Quando Louise impede a guerra – antecipando o gesto do general chinês e repetindo as palavras da esposa dele antes da morte –, ela não opera um milagre; ela revela que só o amor, capaz de perdoar o que ainda não aconteceu, pode salvar um mundo prestes a explodir.

No fim, A Chegada nos devolve à cidade dos homens, com suas mesquinharias e seu medo da dor. A única vitória sobre o tempo é amar sabendo do fim. A fortuna de Louise, de Luis Enrique e de todo aquele que ama sem garantias é transformar o sofrimento em permanência. Permanência não como prisão à dor, mas como fidelidade àquilo que se escolhe. E mesmo quando tudo parece se desfazer, amar, ainda assim.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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