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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Luta de classes

A metáfora da guilhotina

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"Não se preocupem, essa conversa de guilhotina para os ricos é só metáfora" (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Em 17 de julho de 1918, Nicolau II, sua esposa Alexandra e seus cinco filhos – Olga, Tatiana, Maria, Anastásia e Alexei – foram executados a tiros numa casa em Ecaterimburgo. A mando dos bolcheviques, a antiga família imperial russa foi fuzilada no porão, sem julgamento formal, sem clemência, sem distinção entre adultos e crianças. O crime foi justificado como ato político, necessário à revolução. Ora, para a mente revolucionária, não se matava a família Romanov – matava-se o símbolo da aristocracia, o resquício da tirania, o vestígio da opressão.

Voltemos ao Brasil do século 21. Um professor universitário aposentado e uma psicóloga militante reagiram com bravura pela libertação dos oprimidos à imagem da filha de Roberto Justus, uma criança de 5 anos com uma bolsa de grife. Diante da repercussão negativa, voltaram atrás e alegaram que se tratava de metáforas. Pediram desculpas e deram algumas explicações. Basicamente, reafirmaram a crítica à desigualdade que, de algum modo, justificaria o excesso da linguagem.

As pessoas pedem desculpas, mas não negam o conteúdo. Alegam que a forma foi mal interpretada. Reafirmam a crítica à desigualdade como se ela justificasse o uso da violência simbólica

Não sou de desconfiar da sinceridade de arrependimentos. Vai saber, não é? Enfim, tampouco me escandaliza o uso da metáfora. O problema está, precisamente, no que essa metáfora revela. Não se invoca a guilhotina por acaso. Não se sugere o fuzilamento de crianças como se fosse retórica inofensiva. Ainda que a intenção não tenha sido literal, o que se pretendeu expressar – e o que se tornou aceitável dizer – é o que precisa ser considerado. O que foi dito está dito. E a poesia revolucionária é isso mesmo.

Vejamos. O professor, ao comentar a foto da criança, escreveu: “guilhotina resolve”. A psicóloga celebrava os bolcheviques com a frase: “tem que MTR mesmo PQP”. Depois, em vídeo, explicou que o alvo do seu protesto não era a família Justus. Era a desigualdade. Ela tem consciência de classe. Por isso, alegou que não ameaçou ninguém, que apenas protestava contra o “abismo social”. Reiterou que tudo foi dito num “momento de desespero”. A guilhotina era metáfora. O mal desejado, simbólico. O discurso de ódio, nada mais que figura de linguagem. Extremistas são os outros, que interpretam tudo ao pé da letra. Só as desculpas, curiosamente, foram bastante literais.

Talvez tenha sido mesmo. O que leva alguém a olhar a imagem de uma criança e responder com uma metáfora de extermínio de classe? A resposta está na forma como a ideologia transforma estruturas em rostos, sistemas em alvos. A revolta contra o “sistema” encontra, no rosto de uma menina, um símbolo – e símbolos, na lógica revolucionária, podem ser sacrificados no altar da história.

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A metáfora da guilhotina não é excesso de linguagem. Ela carrega uma tradição. Durante a Revolução Francesa, o Terror foi justificado como meio legítimo para eliminar os representantes da velha ordem. O rei, a rainha, os nobres, os padres, os burgueses – todos passaram a ser tratados como encarnações de um inimigo abstrato. Não se matava Luís XVI; matava-se a monarquia. Não se eliminava um indivíduo, mas o símbolo que ele carregava. A metáfora, ali, tornou-se política de Estado.

Os dois comentários, precisamente por serem metáforas, revelam uma adesão implícita a uma lógica perversa: a de que a desigualdade justifica a retaliação simbólica – e que, sob a linguagem da metáfora, é possível expressar a vontade de aniquilar sem assumir a responsabilidade pelo desejo.

A poesia crítica revolucionária denuncia estruturas opressoras e sistemas injustos como “abstrações autônomas e impessoais”. Contudo, ao propor a revolução, converte essas abstrações em alvos humanos. A classe opressora, antes conceito, vira corpo a ser fuzilado. Não se abate um sistema com guilhotinas metafóricas. A culpa estrutural recai sempre sobre indivíduos concretos – inclusive as crianças. Em suma, a crítica recai sobre o “sistema”, mas os afetados são pessoas. A criança não é culpada; ela carrega a marca da classe. O crime não é dela, é da posição social que ela e os pais ocupam.

A metáfora da guilhotina não nos protege da violência. Ela é um dos caminhos bastante explícitos que a preparam

Há, portanto, algo de inquietante no tom com que essas pessoas pedem desculpas. Elas não negam o conteúdo. Alegam que a forma foi mal interpretada. Reafirmam a crítica à desigualdade como se ela justificasse o uso da violência simbólica. Reiteram a raiva como justa, mesmo que mal expressada. E, sobretudo, recolocam-se no lugar de vítimas, como se as ameaças que receberam anulassem o erro inicial. Isso tudo parece um ritual.

E justamente esse gesto que revela a armadilha. Primeiro, assume-se o lugar do oprimido. Depois, ataca-se quem simboliza a opressão. Quando há reação, retorna-se ao lugar de oprimido. O ciclo se repete. E a metáfora da guilhotina, afinal, não nos protege da violência. Ela é um dos caminhos bastante explícitos que a preparam.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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