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Há um vídeo que circula por aí tentando explicar o comunismo em 1 minuto. Vamos lá perder um tostão do nosso tempo. O conhecido narrador – um influenciador digital convicto, herdeiro do marxismo soviético – diz que, numa fábrica de sapatos, se o dono morrer, a produção continua; se os trabalhadores morrerem, tudo para. Conclusão: o capitalista é inútil, o trabalhador é essencial. A moral da história é simples: quem produz deve governar, quem não produz pode ser eliminado.
À primeira vista, a lógica parece irretocável. Quase me converti. Quase. Porém, um olhar um pouco mais atento desvenda o errinho tolo. O operário é a engrenagem viva, o patrão é só um título. O problema é que o raciocínio confunde necessidade com função. Sem trabalhadores não há produção. Sem capital, sem organização, sem crédito e sem propriedade legal, tampouco há fábrica. O que se vende como revelação é, na verdade, um truísmo sofrível: “quem trabalha é quem sustenta o mundo”. Como se o empreendedor não trabalhasse.
O erro não é de economia, e sim de filosofia econômica. Nem Marx foi tão tolo. Ao reduzir o capitalista a “parasita inútil”, o narrador transforma a crítica marxista em julgamento moral digno de roteiro de novela da Globo: ricos, loucos, gananciosos e infelizes; trabalhadores, gente humilde, alegre e que sabe viver a vida. Como se Marx tivesse escrito quatro volumes para concluir que patrões são todos gente malvada. Diferentemente do que parece, a questão em Marx é mais complicada: não está em declarar os ricos moralmente culpados, e sim em mostrar as condições de possibilidade da exploração. Concorde ou não com ele, Marx não faz a crítica ao capitalismo pelo viés moral.
Ao reduzir o capitalista a “parasita inútil”, o narrador transforma a crítica marxista em julgamento moral digno de roteiro de novela da Globo
Para mim, a grande sacada de Marx é o problema da alienação do trabalho. A palavra parece abstrata, mas descreve algo concreto. O trabalhador entra na fábrica de manhã e sai à noite. O sapato produzido não é dele. Vai para o mercado, onde terá um preço que não controla. O que ele recebe em troca é salário, suficiente para mantê-lo vivo e apto a repetir o ciclo. Sua energia vital se converte em objeto estranho, que já não lhe pertence. O produto o abandona e ganha vida própria.
O mais inquietante é que, nesse processo, o próprio trabalhador se estranha de si mesmo e de sua comunidade, ou seja, de sua classe. Perde a própria consciência. Ele não se reconhece no que faz porque já é incapaz de reconhecer a si mesmo. A atividade vira meio de sobrevivência, não expressão de liberdade. A fábrica deixa de ser oficina criativa e torna-se engrenagem que gira fora de seu domínio. Nesse contexto, o capitalista não é inútil: ele é a figura que encarna essa estrutura. Ele concentra os meios de produção e, por isso, tem direito de apropriar-se da diferença entre o valor criado e o salário pago. O nome disso é mais-valor (ou mais-valia).
A teoria crítica de Marx, portanto, não é moral, e sim estrutural. O comunismo, nessa perspectiva, não significa redistribuir riqueza. Para Marx, refere-se ao processo de abolir a alienação, devolver ao homem a posse de sua atividade vital, ou seja, um ato de reconciliação entre o homem e o fruto de seu trabalho.
O problema é que, quando reduzida ao “patrão é um parasita inútil”, a teoria se degrada em panfleto. O que desaparece é justamente a dimensão filosófica e antropológica: a experiência de produzir algo que não nos pertence, de viver num mundo onde as coisas que criamos se voltam contra nós como forças autônomas.
Não precisamos ir longe para perceber isso. O celular no bolso já serve de exemplo. Quem produz o aparelho não o possui. Quem o compra não entende como funciona. A tecnologia aparece como milagre, não como obra humana. O trabalhador chinês que parafusa peças nunca verá seu rosto refletido no vidro brilhante. O adolescente brasileiro que desliza o dedo na tela não sabe que cada clique alimenta um banco de dados que será vendido como mercadoria. O produto não calça ninguém: ele consome o próprio consumidor.
A teoria crítica de Marx não é moral, e sim estrutural
A alienação é isso: viver rodeado por objetos que dependem de nós para existir, embora pareçam independentes, soberanos, quase divinos. O capitalismo industrial apenas radicalizou essa experiência, transformando o homem em apêndice da máquina. É uma nova forma de escravidão. É por isso que a metáfora da fábrica de sapatos precisa ser corrigida. O dono não é inútil, ele é peça necessária para que a engrenagem da alienação funcione.
A crítica marxista, quando levada a sério, não se contenta com a fábula simplista de mocinhos e vilões. Ela expõe o paradoxo de uma sociedade onde a vida se converte em mercadoria, onde o esforço humano se desprende e retorna em forma de salário, dívida ou algoritmo. O comunismo, nesse horizonte, aparece como promessa de reconciliação, ou seja, uma visão materialista da salvação: o homem reencontrando-se com sua própria atividade.
Vale ressaltar, nobre leitor, que não sou marxista, mas minha crítica ficará para outra ocasião. Só acho que é possível estudar (e refutar) o marxismo sem a sedução da caricatura.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




