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Uma menina de doze anos morreu no parto. Estava grávida de oito meses. O bebê sobreviveu. Li uma nota jornalística: “morte por choque refratário”. Nenhuma informação sobre sua vida, apenas a causa clínica do fim. Eu só soube da sua existência ao saber da sua morte: “Menina de 12 anos grávida de oito meses morre durante parto de emergência – bebê sobreviveu; Prefeitura de Betim diz que adolescente não fez pré-natal, e caso é tratado como estupro de vulnerável.” O enunciado traz todos os elementos para o escândalo. A matéria oferece o suficiente para acionar agendas, e o fato bruto se dissolve em disputa.
Não há nada de surpreendente nisso. Quase toda mobilização moral começa pelo fim. É quando a morte trágica irrompe que se tenta construir, retrospectivamente, uma narrativa: quem era, onde estava, o que poderia ter sido feito. O que me chamou a atenção nesse caso, no entanto, não foi a sucessão de omissões. Foi o tipo de resposta que ele tende a provocar — inclusive em mim.
Casos como esse produzem um tipo específico de reação: a apressada instrumentalização moral. A tragédia, pela sua natureza extrema, parece dispor-se à prova. Cada lado busca nela a confirmação de um princípio, de uma agenda, de um dogma. Alguns veem nela um argumento para a legalização do aborto. Outros veem a sobrevivência do bebê como confirmação da dignidade da vida, ainda que gestada no trauma.
O impulso é bastante compreensível. Tragédias são sempre tentadoras para quem quer defender algo. A intensidade do sofrimento parece emprestar força à tese. O que me interessa aqui, porém, não é tomar posição, mas observar esse movimento — inclusive o meu, insisto nisso.
Sou contra o aborto. Escrevi livros e artigos sobre isso. Como qualquer pessoa convicta, tendo a perceber nos fatos confirmações do que já penso. Quando li que o bebê sobreviveu, por um instante considerei aquilo uma evidência favorável. Um filho nasceu, apesar da violência, apesar da morte. A conclusão veio rápido demais. Isso, justamente, me preocupou. Não compartilho essa reação para sinalizar virtude, mas porque reconheço nela um risco real: a minha tentação de ajustar o acontecimento ao que já se espera dele.
Tragédias são sempre tentadoras para quem quer defender algo
A facilidade com que um caso concreto é convertido em prova moral deveria nos constranger. Não porque seja proibido tirar consequências de tragédias — mas porque há um risco constante de antecipar a interpretação antes de compreender o acontecimento.
Essa menina não chegou ao hospital a tempo. Estava em silêncio. Não fez pré-natal. A família se recusou a responder perguntas. Tudo indica que sua gravidez transcorreu longe do olhar das instituições. Não há heroísmo aqui. Não há lição imediata. Há um fato: uma menina morreu por um tipo de negligência. E esse fato, por si só, deveria ser suficiente para nos fazer pensar antes de tirar qualquer inferência.
Quando uma tragédia é convertida em metáfora, ela perde algo de essencial. A complexidade do caso concreto não se resolve com palavras de ordem. Há uma tentação permanente de purificar o acontecimento, de esvaziá-lo das ambiguidades e ajustá-lo à lógica de um argumento heroico. Mesmo quem tem razão pode se precipitar. Eu queria dar respostas, ter certezas, oferecer grandes soluções. Entretanto, o que me constrange é essa mentalidade triunfalista, que transforma sofrimento em peça de confirmação moral.
Há também outro aspecto: o apelo à exceção como critério de julgamento moral gera distorções. Uma criança estuprada e morta em trabalho de parto não é um caso típico. É um limite. Por isso mesmo, sua função argumentativa deveria ser mínima. Não se pensa com base na anomalia. Ela pode nos afetar, comover, chocar. Contudo, não deve guiar nossas decisões políticas e, principalmente, as morais.
O ponto, portanto, não é o que pensar a partir do caso. É como resistir à vontade de transformá-lo em evidência para o que já se pensa, usá-lo para uma agenda, fazer dele um símbolo. A crítica não é só aos outros. É a mim mesmo. À facilidade com que a indignação pode se alinhar à convicção prévia. Ao modo como o horror parece exigir resposta imediata, quando talvez o mais honesto seja suspender o juízo e não sinalizar virtudes.




