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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Violência urbana

O país das necrologias

violência
Vendedor de espetinhos foi executado pelo crime organizado por não conseguir pagar o "pedágio" exigido pela facção. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Eu queria escrever sobre futebol e literatura francesa do século 18. Talvez falar de Diderot e sua paixão pelo paradoxo, ou da beleza inútil de uma tabela bem feita entre Flaco López e Vitor Roque ou o 8 a 0 do Flamengo pra cima do Vitória. Aí, a gente abre o jornal, lê o nosso editorial, e topa com a notícia do rapaz que vendia espetinhos e foi executado por não pagar o dízimo do crime. Dois tiros pelas costas, 23 anos.

O resto da história já conhecemos: o pedágio do crime subiu de R$ 400 para R$ 1 mil. Ele pagou o mesmo valor de antes. Foi promovido de comerciante a cadáver. Chama-se Alexandre Roger Lopes, mas não importa. A cada semana trocamos o nome do defunto. A regra é sempre a mesma: quem não paga pedágio para criminoso morre. O Brasil se tornou um condomínio gerido por facções. O Estado é só o síndico inútil que acha que é o dono do prédio.

E aí a gente vai olhar o estado atual do debate público: a coisa piora porque nem esquerda nem direita estão mais interessadas no Brasil. Cada qual adotou um bezerro de ouro para servir. Uns sonham com Pequim, convencidos de que a China é o novo oráculo da humanidade; outros rezam para Washington, como se os Estados Unidos fossem mãe espiritual da civilização.

O sujeito não se pergunta como enfrentar o crime que executa comerciantes na porta de casa, mas se a ficha cadastral terá espaço para seu pronome de preferência

E pensar que já tivemos debates sérios quando tudo isso aqui ainda era só mato. A direita falava de tradição filosófica como alicerce da civilização, dizia ler Platão e Burke. Podia soar antiquada, mas ao menos discutia alguma coisa. A esquerda lia Marx, Rosa Luxemburgo e Lukács. Podia ser utópica, mas sonhava grande e tinha intelectuais de verdade. Agora, no lugar de Marx, restou o pronome neutro; no lugar de Burke… melhor nem comentar. Antes era disputa de visões, agora já nem sei como descrever o que se passa. E prometo, caro leitor, não me excluo dessa ruína e das minhas responsabilidades.

Esqueci dos liberais. O que dizer dos liberais. Um dia discutiram Mill, Tocqueville, Mises. Falavam de liberdade, limites do poder, responsabilidade individual. Hoje, falam de... nem sei mais do que falam.

E aí estão os identitários, zelosos administradores dessa decadência. Fazem da política um departamento de RH globalizado. Discutem cotas, linguagem neutra, códigos de conduta, gestão de sensibilidades. O sujeito não se pergunta como enfrentar o crime que executa comerciantes na porta de casa, mas se a ficha cadastral terá espaço para seu pronome de preferência. É o esvaziamento total: cadáveres na rua e pronome neutro. O país se afoga em sangue, e nossa elite intelectual disputa vagas em congressos internacionais de diversidade para falar de “Práticas masturbatórias coletivas como ato performativo de resistência decolonial: uma etnografia do punhetaço queer”.

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O Judiciário, que deveria ser guardião da ordem, também decidiu entrar no bestiário. Preocupa-se mais em censurar a internet do que em enfrentar facções que controlam bairros inteiros. Para eles, o inimigo não é o fuzil na esquina, mas o discurso de ódio da tia Marta no X. Em nome da democracia, libertam traficantes flagrados com 200 quilos de cocaína. Em nome da soberania, perseguem críticos de políticos. Democracia é a palavrinha mágica para cobrir qualquer miséria moral.

É claro que o caso de Alexandre Lopes não vai mobilizar debates universitários sobre “colonialidade”. Nem será lembrado nos discursos inflamados sobre patriotismo em plenárias partidárias. A esquerda continuará a dar aulas sobre opressão estrutural e escrever teses sobre a “Cartografias do desejo autoerótico em espaços urbanos precarizados: notas para uma teoria interseccional do c*”. A direita identitária seguirá cantando o hino de peito estufado, e os juízes manterão suas belas poses sobre defesa da democracia. Enquanto isso, as ruas brasileiras colecionam defuntos com eficiência burocrática.

Sério, caro leitor, eu queria escrever sobre Diderot e futebol. Mas hoje, infelizmente, este país só permite escrever necrológios: para o corpo, a bala; para o espírito, a farsa.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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